O mesmo esquema

A figura do autor no cinema cumpre um propósito útil na produção crítica quanto à aferição de sentido dos seus casos particulares, embora isso frequentemente deixa de ser um programa crítico e passe a ser a própria postura artesanal dos diretores, principalmente em nossa época demasiadamente autoconsciente e ensimesmada. Em casos de um estilo autoral marcado ao extremo, como em Wes Anderson, geralmente as rupturas, por mais diminutas que sejam, que conferem o sentido geral do seu percurso. Quase tudo nos seus filmes aponta para uma postura de rigidez e solenidade que, de tão reforçada, se torna paroxística, convertendo-se em infantilidade. Depois de duas décadas reiterando essa mesma identidade estilística filme após filme, Anderson parece ter atingido um ponto de saturação. Seu público aprendeu a não esperar por outra coisa que não os seus marcadores usuais: os ângulos ortogonais e simétricos, os tons pastéis, a performance frígida de seus atores. Contudo, seus últimos projetos parecem denotar certo desgaste dessa identidade e recorrem a estruturas metalinguísticas, mas sem se desvirtuar de sua habitual postura de decupagem. O Esquema Fenício parece ser mais uma iteração dessa guinada, apesar de recorrer a um trajeto mais linear.

A trama do filme poderia facilmente funcionar como uma metáfora para as relações globalizadas contemporâneas, onde marcações políticas e ideológicas são mais facilmente atravessadas por interesses de ordem prática ou comercial. O estilo irônico de Anderson não poderia ter surgido em um outro período que não o nosso, o dos anos 90 em diante, o do triunfo da autorreferencialidade pós-moderna e do mundo globalizado. Mas é importante pensar em como essa ironia funciona como uma extensão de noções gerais sobre humor, ou também, sobre a importância do humor nesses filmes. 

Habituamos a pensar no humor como dependente de uma quebra de expectativa ou de algum descompasso lógico. A lógica composicional de Anderson, quando não atende à uma preocupação puramente fetichista, serve de uma base forte para que se firme expectativas quanto ao espaço. Algumas das melhores piadas de O Esquema Fenício que envolvem o estilo Andersoniano parecem trazer à tona a noção de extracampo, elementos que surgem de fora da composição simétrica — podemos incluir aqui bolas de basquete errando a cesta, flechas, ou explosões. Postos nesses termos, é difícil pensar no humor como uma força positiva. O cinema de Anderson pode não ser necessariamente iconoclasta, existe todo um senso de reverência sensorial pelos seus mundos de maquete, mas fica claro que à altura de O Esquema Fenício, esse cinema parece soar cada vez mais inautêntico, até mesmo para seu criador. Depois de percorrer várias épocas (todas do século XX em diante) e várias partes do mundo em seus filmes, Anderson concatena tudo no seu novo projeto, um em que ele pode mesclar uma amálgama de personagens, culturas e ambientações dentro do seu estilo habitual. Mas a barreira final, os marcadores estilísticos usuais, continua.

As circunstâncias que os personagens se encontram na trama de O Esquema Fenício parecem sinalizar um mal universalizado, um conflito não resolvido entre a busca por autenticidade e a necessidade de compromisso, um que parece se estender dos conflitos internos dos personagens às motivações estilísticas de Anderson. Zsa Zsa Korda, o protagonista vigarista interpretado por Benicio Del Toro, agencia quase todos os outros a sua volta para um empreendimento intercontinental envolvendo uma barragem e uma ferrovia. Entre esses personagens estão sua filha Liesl, que estava prestes a se tornar freira antes que o pai a arrastasse para o esquema e Bjorn, que mais tarde vai se revelar um agente duplo que trabalha com o governo americano para sabotar os planos de Korda. O filme tem direito até a uma guerrilha socialista que posteriormente irá colaborar no esquema da represa e outros personagens que Korda chantageia ou ameaça para aceitarem seus termos de colaboração. Por mais que os filmes de Anderson sejam incrivelmente fetichistas na apreciação de seus mundos fictícios, não existe virtude ideológica, religiosa ou cultural que não sucumba a interesses utilitários e de curto prazo em O Esquema Fenício (isso vale principalmente para os casos que os personagens não estão sendo coagidos e ameaçados de morte pelo protagonista). O mesmo se aplica para os vários governos mundiais que, apesar de estarem em um contexto de guerra fria (o filme é ambientado nos anos 1950), se reúnem com o propósito comum de sabotar os planos do personagem principal conforme ele se desloca de país em país, continente em continente. 

É importante salientar que Korda é um dos dois personagens que não padecem da contradição anteriormente mencionada entre autenticidade e compromisso, justamente por não se ancorar em virtude nenhuma. O antagonista, o seu meio-irmão Nubar, também está nessa mesma condição amoral, chegando a enunciar perto do final do filme, que a vida é “um jogo de determinar quem lambe quem”, uma disputa de poder. Nubar também é o responsável pela crise paralela da trama sobre as dúvidas do parentesco entre Korda e Liesl, um tema caro nos filmes de Anderson. O estado das coisas que os seus personagens se encontram parece dizer muito de sua postura mais recente. Eles se encontram tão deslocados que nem mesmo a unidade da família e de laços sanguíneos parecem resistir. Os personagens precisam, então, forjar parentesco e construir a família. Similarmente, Anderson esteve tão atado ao seu estilo peculiar de rigidez e pedantismo irônicos e autoconscientes que muito do que ele explorou até então corre o risco de soar inautêntico a cada nova investida, cada vez mais deslocados de algo que soe sincero.

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