Zona de Conforto

Em A Voz de Deus (2025), acompanhamos o cotidiano de duas crianças pregadoras evangélicas, em diferentes períodos e momentos da vida: Daniel, de 16 anos, e João Vitor, na casa dos 7. A direção segue e observa os pastores-mirins nos lares, empregos e viagens, captando a preparação para o púlpito, discussões e conversas com a família. O documentário se aproxima de um lado íntimo de duas figuras que compõem um amplo e espinhoso fenômeno dentro do universo religioso, seja ele evangélico ou não: a presença de crianças no exercício da fé. Questões relativas à vontade, desejo, imposição e exposição aparecem em torno de cenas da rotina dos garotos, em conflito com a família, redes sociais e o trabalho formal (João Vitor também faz propaganda nas redes, junto do seu pai, para lojas de roupas da sua cidade, e Daniel trabalha em um mercado). Esses dilemas aparecem ao longo de A voz de Deus em momentos banais da rotina e do convívio dos personagens, em uma tentativa de trazer, a partir da própria vida dos garotos, os disparadores e ferramentas para essas questões.

Nesse sentido, duas sequências especiais se destacam, por tirarem uma certa melancolia e uma graça inesperada dessa problemática. Na primeira, Daniel fica contente com o cancelamento de um culto para o qual seria convidado, pois assim é possível receber um amigo para jogar videogame em casa. Após a partida, o amigo pede para que reze por ele, no que Daniel aceita reclamando que o seu “horário de trabalho” tinha acabado. Noutra, João tenta brincar com a sua pequena irmã no sofá, mas reluta em continuar o afeto para estudar a Bíblia. Os dois no sofá, quase na mesma estatura, protagonizam uma cena cômica e adorável pela pequenez, mas comovente pelo próprio ato de João em parar de brincar para ler a Bíblia. As cenas são captadas como um achado especial em meio à rotina. Aquilo que é imposto (o exercício religioso) e aquilo que é natural do ambiente entram em atrito, criando um certo ruído entre o universo da infância e do trabalho religioso. 

Ao mesmo tempo, para os pastores mirins, esses ruídos não interferem nos desejos ou nas suas vontades do exercício da fé, visto que, mais para frente, ao se encontrarem na igreja para pregar a palavra, a performance pastoral é realizada com fervor, cada um à sua maneira. Com Daniel, a exibição no palco soa como uma extensão da sua personagem, uma vez que a oratória firme e clara se manifesta tanto em casa quanto no culto, onde o garoto aproxima-se dos fiéis, dando sermões e pedindo que falem em línguas. Com João, o espanto é pelo conjunto: uma pequena criança, com um microfone no tamanho do rosto, engravatado e de topete, falando sobre pecados e sermões para os fiéis, todos impactados e concentrados na escuta da palavra. Sai de cena a arrogância e a indisciplina típicas dessa idade (como vemos nas discussões com a mãe em outras ocasiões) e entra um garoto sério e focado no altar e no público ao redor. A câmera, aqui, diferente da proximidade do cotidiano, se estabelece a plano fixo ao redor da igreja, intercalando entre diferentes pontos que dão a ver os fiéis e o espaço por completo, como uma missa filmada, mas de pouca duração. Essa oposição (imersão, câmera movente no cotidiano e rigidez no púlpito) enfraquece o ato mais aguardado, por se indispor a um risco maior de estar ao lado, de trás ou em movimento. Há, provavelmente, certos paradigmas e regras de um culto que impedem maiores interferências, o que de fato prejudica o filme, cujas melhores cenas estão longe do palco (João brincando com amigos antes de colocar a fantasia para cantar no palco, Daniel perdido na manifestação pró-Lula em São Paulo). A mesma imersão e permissão que faz com que o filme adentre todos os espaços, também o impede de sair de uma camada mais neutra das coisas e se distanciar do fenômeno em ação. Talvez, a sensação que fica é a de conhecer a vida das crianças antes do exercício da fé no palco, com a influência da família, brincadeiras, discussões e outros trabalhos, seja para entendê-la como uma motivação a mais ou como uma infância perdida. 

Se a imersão é uma opção para humanizar e compreender o fenômeno com lentes limpas que não julgam nem engajam, apesar de louvável por trazer um lado dessa prática que é vista mais pelas telas das redes sociais e nas gravações de pregações, também inibe de criar um certo movimento além de simplesmente apresentar e expor uma realidade. Um acompanhamento tão fiel perde de vista uma certa tensão que o próprio assunto poderia causar, mantendo uma linha neutra que pouco investiga e questiona o fenômeno. Para o público de fora da realidade neopentecostal dos pastores-mirins, a reação de assistir uma criança pregando o evangelho se torna semelhante a assistir a um reality show da vida delas, com seus conflitos e complexidades internas inerentes ao próprio convívio familiar comum.

Autor

  • Egberto Santana

    Formado em jornalismo pela Unesp de Bauru em 2021, é co-fundador da Revista Descompasso, repórter correspondente de Poá na Agência Mural de Jornalismo das Periferias, redator freelancer e crítico de cinema em vários cantos. Possui textos publicados no Plano Aberto, Persona Unesp, Corpo Crítico (2020) Mostra Cinema do Presente (2021), Nicho 54 (2021) e no Laboratório Crítico da Revista Crítica de Cinemas Africanos (2022)

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