Interrupções e fissuras no rito

A aproximação de um veículo a uma grande placa escrita Eros Hotel rompe a escuridão dos créditos iniciais do filme. Os muros altos, as luzes neon e a câmera posicionada dentro do carro delimitam algumas das cartas que Eros (2024) irá jogar. A inconfundível arquitetura dos moteis, que buscam ao máximo preservar os segredos de seus interiores, é vencida plano a plano junto ao corpo que manuseia o dispositivo. O rito é banal a qualquer um que já frequentou “a maior instituição de sexo do Brasil”, como a diretora diz em voz off: escolher uma suíte, deslocar-se até ela e ter a possibilidade de viver livremente seus desejos sexuais. Dentro do recinto, o corpo esguio de Rachel Ellis, diretora do filme, contrapõe o anonimato dos planos iniciais e, diante de um espelho, se filma seminua nos mais variados ângulos, como se estivesse escolhendo o enquadramento ideal. Ela olha para a câmera, ajeita sua lingerie e aguarda pacientemente a chegada de seu parceiro sexual. Entretanto, o jogo que inicialmente estava posto para gravar imagens íntimas desse encontro, o que provavelmente seria somente para registro pessoal, é frustrado com a injustificada ausência do outro. Em silêncio e solitária, os gemidos das outras suítes que invadem seu quarto transformam o interesse pelas imagens do eu em um interesse pelas imagens dos outros, por aquilo que acontece nas outras camas dos motéis. 

A diretora se coloca no filme e, em seguida, se ausenta para que esses outros quartos invadam as cenas. Isto posto, em voz off Rachel delimita a dinâmica que acompanhará os minutos seguintes de projeção: “Comecei a ouvir histórias de clientes de motéis de distintos lugares do Brasil. Com algumas pessoas aprofundei uma troca mais íntima e perguntei se topariam ir para um motel se filmarem e me mandarem os vídeos para fazer parte de um filme”. Eis aqui não somente parte do filme, mas a espinha dorsal de Eros. O texto lido por Rachel também poderia facilmente abrir uma série de outros filmes com a substituição do objeto de interesse: se trocarmos os motéis pelos navios de cruzeiros, temos Pacific (Marcelo Pedroso, 2009); pela relação entre patrão e empregada, Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012); ou pela vida marginal nas ruas, Jardim Nova Bahia (Aloysio Raulino, 1971). A lista é extensa e pode também contemplar outras maneiras de acessar imagens de interesse, como filmes de arquivo, mas há algo que une e circunscreve as obras em questão. Enquanto há em Filme dos Outros (Lincoln Péricles, 2014) e Câmara Escura (Marcelo Pedroso, 2012), cada um a seu modo, uma espécie de violação do espaço e da propriedade pessoal, sejam os muros ou as imagens, a dimensão da autorrepresentação na mise-en-scène é central para que haja Eros e estes outros filmes. Isto é, há uma dupla inscrição na autoria desses registros ao passo que esses personagens são sujeitos e objetos de suas próprias imagens, controlam a inscrição cênica ao mesmo tempo que são capturados por ela.

Apesar disso, se nos filmes de Pedroso e Mascaro ceder o dispositivo ao outro é o gesto que vai navegar pela barreira dialética da co-dependência entre o eu e o outro, Eros parece encontrar uma posição ainda mais particular em meio a essa “tradição” de fazer fílmico e rompe alguma intimidade que ainda estava obstruída. Enquanto Pacific e Doméstica, possivelmente os filmes que mais se assemelham a Eros em termos de procedimento, sublinham um conflito de classes entre os sujeitos — entre quem filma e quem é filmado —, Eros dispõe mais de um interesse na vida erótica e privada dessas pessoas do que necessariamente em grupos que se antagonizam, postura que, na verdade, produz outras formas de conflito. Se Doméstica é regido por um atrito de classes, cênico por consequência, o conflito em Eros opera pela montagem que sobrepõe diferentes acontecimentos filmados e pelo modo como cada casal registra seu próprio pornô amador.

À exceção da primeira e da última sequência, que justamente retratam sujeitos sozinhos nos respectivos motéis, Eros se organiza em um conjunto de cenas que se dividem por suíte, por assim dizer. Isto é, cada bloco de planos corresponde à uma noite, à uma relação, que parece seguir uma ordem similar de acontecimentos — algo que, reforçado pela montagem, emerge como um rito a ser performado no interior dos muros altos com luzes neon. Na maioria dos casos, o procedimento é o seguinte: apresenta-se o espaço e o parceiro ou parceira com breves comentários de quem está segurando a câmera, uma pequena sequência erótica (nem sempre com momentos de sexo explícito), uma sequência do casal comendo algo que o motel oferece e um momento em que um dos parceiros está na ausência do outro e pontua sobre algo das mais variadas ordens — evangélicos no motel, garotas de programa e declarações de amor são alguns entre os exemplos possíveis. Mas, ainda assim, em meio ao rito e à repetição, Eros parece encontrar fissuras em sua casca, algo que não é capturado por inteiro. 

Similar à estrutura reservada do motel que procura proteger o anonimato — janelas viradas para os fundos; entradas dos quartos pela garagem; solicitação de suítes por uma tela touchscreen; pedidos de comida entregues por um cubículo sem qualquer contato humano —, a montagem do filme e a própria auto mise-en-scène das personagens retém algumas informações e imagens. Como no motel, parece haver um jogo entre uma hipervisibilidade (é uma arquitetura inteira pensada para o sexo, desde os espelhos no teto até o tipo da cama) e uma separação da vida externa (muros altos, isolamento acústico, estacionamento privativo). Ali, o erótico é possível em seu limite, onde a vida pública se reserva momentaneamente — estimulado até o ponto de exaustão. No entanto, é essa mesma intensidade que produz um distanciamento do cotidiano e talvez do próprio sexo, como se a possibilidade ilimitada do tesão, junto à presença da câmera, produzisse outro tipo de desejo e relação com aquele espaço. 

Um exemplo é a sequência de Fernanda e Ribersson, um casal que tem uma noite de despedida porque a mulher vai sair do Brasil. Num primeiro momento, vemos apenas duas pessoas numa noite romântica: eles se acariciam na cama e transam na banheira ao som de sertanejos — o enquadramento estratégico captura apenas a parte de cima de seus corpos em movimento, sem nada explícito. Na madrugada, Fernanda leva seu celular para o banheiro e se grava falando com a câmera. Ela conta que conheceu Ribersson antes de sua transição de gênero e que há anos eles se relacionam à distância porque ela foi incriminada. O curioso aqui é que o casal vivencia uma despedida e, ao invés da sequência ser sobre seus últimos momentos juntos, Fernanda toma a maior parte da cena dando seu depoimento pessoal sobre a história de amor. Ela captura o dispositivo e o leva para o banheiro, que não é mostrado em nenhum outro bloco, e cria um espaço próprio e privado dentro da já reservada suíte do motel. Nesse cenário, filmar a intimidade com o parceiro não necessariamente significa filmar o sexo, mas relembrar a própria vida por meio do relato. 

Esse gesto não é isolado. A decisão de interromper o encontro íntimo para dar lugar a uma fala em primeira pessoa — seja por uma escolha da personagem, seja por uma decisão da diretora — exemplifica uma das estratégias recorrentes do filme na construção da montagem. Em vez de seguir uma progressão contínua e previsível, a narrativa se estrutura a partir de cortes e desvios, como se recusasse a oferecer uma cronologia do desejo que começa nas preliminares e termina no orgasmo. Rachel não quer solucionar o “caso” das relações romântico-sexuais nos motéis brasileiros — como as pessoas se comportam? o sexo é espontâneo? quais tipos de casais frequentam esses espaços? —, mas, sim, criar um motivo, uma “deixa”, para que o erótico apareça em cena de maneiras inesperadas. Enquanto na segunda sequência, por exemplo, temos um casal de meia-idade que frequenta quartos de motéis durante anos e age com muita naturalidade diante da câmera, na metade final temos um casal de prática BDSM que parece se interessar mais pela ideia de se filmar, pensando no posicionamento da câmera diante dos equipamentos e acessórios do quarto, do que pelo ato sexual em si. Em todos os casos, a própria premissa de gravar a ida ao motel se transforma em um ato erótico: as personagens precisam pensar em como desejam se filmar e ser filmadas, ser simultâneamente objeto e sujeito (Malva, a senhora do primeiro bloco, deita numa posição sensual e pede para seu parceiro a filmar com os cabelos caindo da cama); se vão mostrar cenas explícitas ou não; como vão reproduzir o “clima” de cada relação. 

Assim, não temos o contexto “completo” dos casais ou como eles foram para ali. Cada pessoa decide como vai expor sua dinâmica e agir diante da câmera,  inclusive justificando a razão para frequentar motéis, como o casal de evangélicos que quer o silêncio e a distância do lar da família. De certa forma, é isso que também preserva o anonimato das personagens, postura radicalmente oposta à imagem que a indústria pornográfica demanda: hipervisível, hiperiluminada, em que tudo pode ser visto. Elas não escondem seus rostos ou seus nomes, na maioria dos casos, mas o filme também não demanda que saibamos mais sobre aquelas histórias. Sobre os sujeitos que se filmam, bastam as sequências que decidiram expor ao mundo, entre o espaço privado do motel e o gesto de torná-lo público pelo cinema. Aqui, o que importa não é a exposição dos corpos ou mesmo das relações entre as pessoas, mas a cena que se cria a partir de um espaço dedicado ao sexo — que suspende as relações cotidianas e revela outras dinâmicas sociais, tomando por empréstimo a formulação de Foucault sobre heterotopias

É neste sentido também que o filme, em sua inscrição, joga com aquilo que é próprio do pornográfico sem aderir completamente ao gênero nos moldes da indústria. Ele não se omite de expor cenas sexuais explícitas, seja entre os amantes, seja na televisão dos quartos, mas sua montagem e fruição narrativa negam a plena transparência. No pornô, via de regra, o mais explícito possível é o mais desejável: o objetivo final é a performance. Em Eros, o gozo sequer é mostrado e a transa nunca acaba com o fim do sexo — não é tanto sobre o mostrar quanto é sobre explorar as possibilidades das relações e autorrepresentações num lugar não destinado ao olhar público. Apesar disso, o filme dialoga com a estética do pornô amador, tanto pela utilização de câmera subjetiva (POV) quanto pelo posicionamento desta, apoiada em objetos do quarto, registrando o ato sexual em enquadramento fixo de modo a preservar sua visibilidade e audibilidade. Contudo, a montagem estabelece uma distância crítica a estas imagens. Uma das sequências é destinada a filmar um trisal que encena um estereótipo conhecido da indústria pornográfica: a freira e o padre. Ao decorrer da cena, descobrimos que, na verdade, trata-se de uma performance filmada para algum site de venda de conteúdo adulto. Ao invés da montagem inserir a imagem hipervisível do boquete em POV, vemos, por meio de um espelho, apenas um fragmento da cena, como se o filme tivesse uma recusa a este falseamento e, para isso, estabelece uma ressalva no visível.

Com isso, o efeito mais interessante é um erótico que está sempre se perdendo e se reconfigurando novamente à medida que as sequências terminam e se reiniciam com dinâmicas completamente diferentes. Camila e Héber, um casal que frequenta um motel de swing, exemplificam essa premissa básica do filme. Eles esperam por algum tipo de interação a partir do dispositivo oferecido pelo quarto — um painel de contato que permite a troca de casais. Eles sabem que estão sendo observados quando o quarto vizinho abre a persiana, mas se recusa a continuar o jogo quando o outro lado quer só assistir a cena, mas não topa interagir. Há um tesão pelo voyeurismo mas, sobretudo, pela possibilidade de um encontro bruto com pessoas externas à intimidade do casal — inclusive nós, que assistimos ao filme. 

Começamos e terminamos o filme com a angústia de se estar sozinho num lugar que, a princípio, é feito para a companhia de duas ou mais pessoas. Diferente da situação de Rachel, no entanto, Luis Basquiat escolheu ir ao motel sozinho — uma oportunidade de se despir diante da câmera, segundo ele. Basquiat monta o cenário de sua suíte e tenta criar a ambiência de sua performance: num quarto muito mais simples que os das sequências anteriores, sem banheira de hidromassagem ou luzes neon, ele filma um ring light que, para ele, é a própria lua; depois tenta apagar as luzes, mas as luzes não se apagam. Ele recita um poema e, no meio da declamação, esquece uma parte e recomeça a cena — já adiantando para a câmera (ou para Rachel) que errou e retomaria a partir de outra estrofe. Ele assiste pornô e se pergunta “será que eu vou acabar me masturbando para o resto da vida?”; e come uma pizza como se transasse com o alimento — “muito bom, muito quente”, afirma. 

Entre a encenação dramatizada e o constante fracasso, Basquiat condensa as variadas possibilidades de se filmar num quarto de motel numa única sequência, como se vomitasse todas suas angústias, desejos e vontades de atuação na oportunidade única de um ponto de diálogo, ainda que na solidão, conosco, espectadores do filme. Mas nós também somos seus amantes imaginários e todos os casais anteriores que de alguma forma ecoam em sua presença, pois também sentimos o peso do dispositivo: de acompanhar repetidamente o ritual de tesão de cada casal, seja ele recriado a partir da intimidade cotidiana, seja a partir de uma encenação mais ensaiada. De uma forma ou outra, nem o tesão sustenta a possibilidade aparentemente ilimitada de sexo dos quartos de motéis. É Basquiat, portanto, quem encerra a repetição e a exposição momentânea desses espaços privados. Ele abraça a melancolia inevitavelmente implicada no desejo e materializa seus diferentes estágios: tesão, vaidade, medo, saudade, nostalgia e a impossibilidade de fugir da solidão e penetrar definitivamente no espaço do outro (seja este outro seu objeto de desejo ou as relações íntimas das sequências anteriores). Resta o contato temporário e finito com a câmera: o erótico é uma imagem, ou uma coleção de imagens, que circulam no breve intervalo de suspensão da vida cotidiana — neste caso, as infinitas suítes dos motéis brasileiros.

Autores

  • Revista Descompasso

    A Descompasso foi criada em agosto de 2023 com o objetivo de ser um veículo independente de exercício, prática e expressão da escrita crítica sobre o cinema, a música e outras manifestações artísticas.

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  • Larissa Muniz

    Larissa Muniz atua nas áreas de montagem, roteiro, realização, pesquisa e crítica/curadoria. Dirigiu os curtas-metragens “ela viu aranhas”, exibido na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, e “eu vi nos seus olhos, da janela, eu vi, que era o fim”, contemplado pelo 6º Prêmio BDMG Cultural/FCS. Mestranda em Comunicação Social pela UFMG, onde desenvolve um filme de arquivos sobre narrativas experimentais feministas dos anos 1970 e 1980.

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  • Renan Eduardo

    Renan Eduardo é mestrando em Comunicação Social pela UFMG e editor da Revista Descompasso. Integrou o Júri Jovem da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes e o Talents Rio Crítica 2024. Foi curador do estande “Mil e uma quebradas: o Capão Redondo sob as poéticas de Lincoln Péricles (LKT)” para a plataforma Spcine Play e assistente de curadoria no 11º Cinecipó – Festival do Filme Insurgente. Integra a Comissão de Seleção Nacional do FestCurtasBH desde 2024, é curador no II Festival de Cinema de Diamantina, na VIII Mostra de Cinema do Sesc e participa do grupo de pesquisa “Poéticas da Experiência” (PPGCOM-UFMG).

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