Olhos e ouvidos em vigília: sobre ‘Olho na Rua, Ouvido na cozinha’ (Lula Lourenço, 1978)

Um rasgo desde a passagem de créditos: desponta uma serra em tons empalidecidos, mais próximo à câmera está o matagal – que parece tremular – talvez o movimento seja aquele das marcas na película, agora digitalizada. Ocorrências como essa matizam nossa experiência: o filme encontrado apresenta novas inscrições em sua superfície, de maneira que nem sempre seja possível distinguir plenamente entre a impostação autoral e uma fratura que se manifestou na matéria. De maneira abrupta, o som é cortado: o tema do considerado primeiro disco de psicodelia nacional, a partir de Bailado das Muscarias (Paebiru, Lula Côrtes e Zé Ramalho, 1975), é interrompido, cromatizando a atmosfera do filme com uma síntese angular entre os solos de violão e o ressoar das flautas. 

A serra é reenquadrada, o silêncio quebrado. O matagal realmente tremula. Alan’s Psychedelic Breakfast (Atom Heart Mother, Pink Floyd, 1970) irrompe, impregnando o filme uma vez mais com a atmosfera lírica – nos sentimos quase sempre suspensos entre a sobriedade da matéria e o delírio da sugestão – agora embalados pela música que faz uso de colagens sonoras e alguns dedilhados discretos de guitarra. O ruído se apresenta desde sua face mais harmônica, o que parece ser uma tendência geral do filme: compor a partir daquilo que a princípio não parecia poder se juntar ao todo. Um zoom in faz ver de perto a neblina que nasce do seio da cordilheira, a vegetação mostra suas faces: as árvores são tanto finas e retorcidas, moldadas pela aridez característica do agreste pernambucano, quanto mais imponentes, com a exuberância que remonta à mata atlântica. Algumas casas estão fincadas no relevo, num movimento singelo, a visão do Alto do Moura se alarga. O filme vai se abrindo a esse duplo movimento: de caracterização de um entorno – preso ao chão, com traços bem identificáveis –, e pelo romantismo observável em algumas de suas cenas, que saltam aos olhos, dado a vocação de tableau

A primeira intrusão nas sequências de quadros da serra é uma janela – imagem reincidente. Um homem sobrepõe-se à cena. Os planos são marcados por essa fixidez da câmera, contrariando o uso mais convencional da Super 8 que explora seu caráter portátil. A aposta de Lula Lourenço parece direcionar-se antes a uma certa duração dos enquadramentos – dos motes contemplativos – da janela como intrusão do mundo desde a quietude da casa. O zoom aparece em alguns momentos, como um recorte do todo, uma insinuação singela de sentido, que, no entanto, nunca chega a se efetivar. A janela, ou o recorte, se quisermos, é a própria maneira de aproximação do filme ao entorno, seu gesto ínfimo é com certeza de cunho  fotográfico: ater-se a transparência do que está em volta para construir um outro todo, que diz respeito ao imaginário do próprio filme.

O léxico imagético se alastra, fita os móveis e adornos da casa de maneira detida. A montagem convida à composição e à multiplicação de horizontes: dos planos que filmam o que está dentro da casa, dos que filmam de fora para dentro, e dos que vão de dentro para fora. Há a um só tempo a persistência dos motivos e a alternância das perspectivas. Ao som de A Chamada (Milagre dos Peixes, Milton Nascimento, 1973) uma mulher é enquadrada prostrando seu corpo para apanhar uma criança, que se localiza embaixo da cena. A trilha endossa aquela atmosfera um tanto quanto campesina, ao mesmo tempo que faz ver algo que não está tão simplesmente manifesto nas imagens visuais: somos tomados pela voz angelical de Milton Nascimento, pela percussão, pelos gritos e sussurros, que vão se colando – paradoxalmente – à quietude da serra e dos cuidados domésticos. Essa vinculação tão bem arquitetada ganha força de necessidade: parece ser impossível voltar a mirar a serra, sem que dos ombros até as orelhas emerja a voz de Milton.

No átimo final, a vida do rio invade o entorno, vemos mulheres que lavam roupas, crianças a nadar; somos surpreendidos pelas síntese sensível entre o pedregoso das margens e a transparência das águas. As associações de imagens tornam-se mais dispersivas a partir desse momento e ganham caráter de epítome a partir da sonoridade: reemergem cenas domésticas da mulher a lavar louças, da criança que solicita a atenção da mulher, do homem, que mantém-se diante do enquadramento da janela. Um plano do cemitério, um contraplano do homem a fitá-lo. De maneira aproximada vemos um corpo por entre as folhas, em um próximo momento, a limpidez da água do rio é saturada pelo reflexo deste corpo. Um menino pescando. O ímpeto composicional chega a seu ápice: o homem bate a mão no papel diante da janela, vemos o plano de uma perna que corre no mato, a mulher interage com a criança. Reemergem os temas. Rasgos de uma repetição diferenciadora. As imagens finais parecem ter incorporado algo daquele tom etéreo que soou nas flautas, nos solos, nos gritos. 

A sensibilidade de Lourenço orienta-se, assim, para a composição do fotográfico. Recusa a peripécia do sentido imputado provinda do cinema tradicional. Concentra-se e mantém, recorta do todo cenas concretas demais para serem arcades, singelas demais para rivalizar com a implacabilidade do real. A meio caminho entre elegia e observação, o Super 8 ganha uma nova conotação: de não se ater ao seu caráter portátil, mas de submeter-se ao desafio da perenidade. Há uma sensibilidade fotográfica até mesmo no não fotográfico: a inscrição daquilo que ao se inscrever torna-se perpetuamente a lembrança de uma presença – agora ausente. Não fosse o trabalho de pesquisa e preservação, Olho na Rua, Ouvido na cozinha seria um sonho esquecido de uma noite chamada história do cinema. Seu ímpeto mais marcante talvez seja o de resistir à enunciação fácil e fazer um pacto com a matéria do mundo – em seu estado de bruma. Sua sonoridade convida-nos a sugestões alucinadas que, no entanto, não resistem à tangibilidade do que temos à frente. A composição ganha ares de uma condecoração às superfícies – que dançam – aos olhos e ouvidos daqueles que continuaram.

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