Algo dissoa em meio aos curtas metragens que celebram de forma afirmativa a feminilidade. Seja por meio dos planos longos que capturam uma performance, em Recado Incandescente (Viviane de Cássia Ferreira, 2025); ou pelos gestos de montagem que organizam o material de arquivo dos cinemas femininos do século XX, em Safo, a doce-amarga (Larissa Muniz, 2025), emerge uma intrusão. Ouvimos um bolero antes mesmo dos créditos, somos conduzidas pelas vibrações quase épicas e quase trágicas de Triste Madrugada, de Núbia Lafayette, imagens despontam na tela e instauram a cena: são bucetas enquadradas frontalmente, cobertas pelo verniz da má qualidade. Há mais insinuação sexual, um pé trajando salto alto esfrega em alguma outra superfície. Sabemos bem o que significam aqueles textos escritos em fonte Arial. Em meio ao passeio pela tela, uma fixação: o vermelho timbrado.
Já em suas primeiras figurações, Núbia (Bárbara Bello, 2025) mostra a matéria de que é prenhe: insinuações melodramáticas; imagens provindas do submundo da internet; brincadeiras com texturas, sonoras evisuas, ou a colisão entre ambas; pornografia. Do vermelho timbrado ao corte abrupto. Um corpo decapitado nu, sentado sobre a cama, submergido pelo vermelho, aqui, a cor da fonte de iluminação. A luz vermelha entra como num jogo de chiaroscuro, funciona como o imperativo dramático que a tudo cobre, enfatizando as dobras do lençol e alguns contornos daquele fragmento de corpo feminino.
Em enquadramento fixo, o corpo movimenta-se pela cama, mas nunca chegamos a vê-lo em movimento, vemos tão somente suas novas posições. Os acessórios se fazem notar, algo entre o látex e o couro: a bota, a fita que cobre a boca, a mão coberta por uma luva preta. A partir do imaginário do BDSM, o erotismo é apresentado como sendo uma arena por excelência não-normativa, em que os corpos são levados aos seus limites. Seu movimento propulsor vai de dentro para fora, com forte tendência à fragmentação. A matéria sonora se metamorfoseia, ouvimos respiros profundos e o soar do que parece ser um xilofone – são sempre três notas que em nada culminam, estão sempre dispostas a recomeçar. Bem na tangente do plano o corpo começa a se masturbar. No outro canto há um pedaço de vidro, subdivido em centenas de quadrados, que confere um brilho à cena. Trata-se de uma certa preponderância que desponta da periferia do quadro.
Como em um sforzando, a trilha passa por uma transformação: repete, insiste, justapõe, intensifica. Ouvimos um chicote batendo. A invasão de uma mão anônima sobre o corpo prostrado na cama dispersa a cena contida em um ambiente fechado. A cidade invade o plano, e, sobreposta às luzes que brilham na escuridão, permanece em miniatura a performance que tinha lugar no quarto. A sequência que enquadra frontalmente a buceta se masturbando está ao mesmo tempo no centro e na periferia do quadro. No centro, porque demanda o olhar do espectador e cria em torno de si uma estrutura hierárquica, apesar de estar descentralizada, apresenta certa urgência: um corpo se masturbando. Na periferia porque é menor, destoa do todo, está à margem – como está a vida privada e as vivências sexuais, em relação à totalidade da vida na cidade.
Esse jogo de forças entre o centro e a periferia é estruturante em Núbia, entre o fechado e o aberto, entre a parte e o todo, entre o um e o múltiplo. A verdadeira força do filme parece mesmo estar atrelada a um impulso que se espalha por diferentes materialidades, que cria fricções entre som direto e em off, entre cidade e quarto, entre rosto e corpo anônimo, entre experimentação sonora e Núbia Lafayette. O bolero de Lafayette que impregna a atmosfera do filme desde seu primeiro átimo não enseja um tom nostálgico. É mais uma dobra semântica no caleidoscópio de recursos do filme. Uma carta de amor, cunhada pelo pulsar da sensibilidade do futuro. Afinal, Núbia, o filme, não se deixa limitar pela diferença higienizada entre gêneros, de apresentar variações tão somente da trilha em relação à própria trilha: cria também atritos entre bolero e masturbação, plano estático em movimento e xilofone, pornografia e close-up, flickering e respiração. Os fragmentos de imagens, sonoras e visuais, se combinam e recombinam inesperadamente e despertam um sentimento por vezes tão longínquo em nossa cinefilia: de estar diante de imagens que pensam (enquanto dançam e se masturbam).
A dispersão nos brinda com as mais singelas imagens. Carros passam pelas ruas esvaziadas. Uma única pessoa caminha a passos lentos pelo asfalto anoitecido. O som direto das rodovias emerge. Os planos estáticos dão lugar a um take que acompanha o movimento de um carro, sob a escuridão brotam pequenas fontes de luz. Tem lugar o gesto de montagem mais marcado do filme: um flickering entre o vermelho timbrado, a face de uma pessoa fumando, duas pessoas subindo uma escada e uma buceta se masturbando. Apesar da insinuação rítmica na trilha, não há clímax. Ouvimos respiros e voltamos a ver em enquadramento fixo os prédios iluminados por focos descontínuos de iluminação. Depois em movimento, uma viagem pelo lusco-fusco no carro, por recortes de rostos e pela cidade em vias de evadir. Como num deslocamento helicoidal voltamos ao quarto do início, agora banhado pela luz da manhã. O corpo está de costas e agarra-se junto à janela.
Não é exagerado dizer que o filme desponta à guisa de uma centelha que quase nos cega os olhos, rompendo com todo o horizonte de expectativa em relação ao que vem sendo exibido no circuito de festivais: obras que apresentam enunciados estáveis aos quais é desejável aderir. Núbia se imiscui em meio a incerteza das formas, ou mesmo, formaliza a própria incerteza da novidade. É necessário se atentar ao seu caráter de evento, de cindir em dois a temporalidade e fundar uma configuração para inspirar o cinema porvir. Seu modo é aquele de uma hermafroditismo sempre nascente, o de uma demiurgia que vai até o Banquete de Platão para refundar o mito de acordo com a sensibilidade de nossos tempos: é preciso não mais partir a esfera andrógina em dois, mas esfacelá-la em cem mil pedaços.

