O céu de abril amanheceu encoberto. Havia uma névoa que tornava as imagens mais difíceis de decifrar — e talvez por isso mesmo, mais interessantes. Nicholas Correa observou a Sessão Babel na Cinemateca do MAM-Rio e notou como os curtas ali exibidos se dedicavam à montagem como forma de investigar a tensão entre o material e o abstrato, entre o suporte físico do filme e as ilusões que ele produz. Já Helena Elias pensou sobre o estranhamento dos sentidos e a suspensão do real em Cidade dos Sonhos e As aventuras de uma francesa na Coreia, filmes que nos fazem repensar os próprios vínculos de atenção com o mundo. Luiz Fernando Coutinho, em contato com Tardes de Soledad, de Albert Serra, escreveu sobre um cinema que não termina nos créditos, mas continua reverberando — não como lembrança, mas como desvio: o filme empurra o pensamento para outras obras, outros autores, outros modos de ver. Renan Eduardo retornou ao método obsessivo da cinefilia por ciclos, revendo Straub-Huillet e encontrando ligações subterrâneas entre formas e direções improváveis. E Egberto Santana mergulhou na primeira temporada de O Ensaio, série de Nathan Fielder, e nos lembrou de que mesmo no espaço mais fabricado, o que está em jogo é a exposição: não da verdade, mas da própria tentativa de criá-la diante da câmera. Maria Sucar traçou relações entre sua prática artística e seu trabalho como monitora de estética, pensando em como sua viagem rumo à Paraíba transformou seu pensamento sobre as imagens.
Todos tatearam entre artifício e realidade, com olhos semicerrados diante de uma luz instável. Abril foi um mês em suspensão: o sol ameaçou surgir, mas antes veio chuva.
O faz-de-conta, as cobaias, as câmeras e o maestro
Egberto Santana
“O Ensaio”, série da HBO, estreou sua segunda temporada em abril. A produção aposta na exposição do hibridismo entre documentário e ficção pela veia cômica de uma maneira peculiar. A tese é, de primeira, simples: Nathan Fielder, o cabeça de tudo, ensaia situações de vida de pessoas angustiadas com alguma questão, usando cenários extremos e roteiros detalhados para ser o mais fiel possível com futuros acontecimentos. Na primeira temporada, uma mulher sonha em criar um filho, mas não sabe se vai ser bem sucedida. Aí entra a grana da HBO e os atores de Fielder. Bebês, crianças e adolescentes que vão atuar em uma casa construída para o projeto e falsamente isolada do centro urbano, como desejava a, agora, “mãe” deles. Fielder expõe cada passo das suas ideias, opina sobre os envolvidos no experimento (atores ou não) e é afetado por eles. Mais importante, o autor registra cada imagem do espaço montado para o ensaio com as dezenas de câmeras escondidas. Momentos de conversas particulares são captados por diálogos aproximados, até que uma imagem de segundos revela a equipe em volta, registrando uma conversa íntima. Em outros instantes, há apenas a câmera escondida, como um olhar vigilante, evidenciando a ambição e a concretude do projeto. Em sequências mais especiais a montagem desfaz o efeito de faz-de-conta do ensaio, inserindo uma imagem que subverte com a fé da personagem (e a nossa até aquele momento), entregando as cartas, trocando de atores ou exibindo as câmeras. Tudo para que a produção tenha seus melhores efeitos, sejam cômicos ou de solução das angústias. A mistura de artificialidade, estudo de criação de personagem e reality show gera um desconforto na experiência, concentrados na figura de Fielder, com um ar frio, metódico e objetivo em seus planos, sem esboçar muitos sentimentos. O Ensaio é uma coleção de “momentos cringe”, como dizem alguns textos. Fato é que é difícil encontrar uma expressão que defina bem e caiba dentro do projeto. A síntese talvez seja melhor encontrada em um diálogo de outra série, “Nathan for you” (2013) — na qual o próprio Nathan procura resolver negócios mal sucedidos de comerciantes — quando ele pergunta para uma moça (não-atriz) se ela deseja tirar as câmeras, no que ela responde prontamente: “mas se tirar perde o propósito”. Reflexivo, ele responde “qual o propósito?”. Ela finaliza: “filmar tudo isso, não é o propósito?”
Um contra-díptico
Helena Elias
Filmes que compõem grandes cinematografias “recentes” estão em cartaz no cinema comercial: Lynch e Hong Sang-soo, com os respectivos Cidade dos Sonhos (2001) e As aventuras de uma francesa na Coreia (2024). É difícil falar de uma continuidade formal entre os dois filmes que se diferem em quase tudo, é verdade. Contudo, eles se filiam, sem dúvida, às tendências cinematográficas que intensificam áreas da realidade ao invés de instaurar uma ordem definida. Talvez por isso, assistir a Cidade do Sonhos no meio da tarde proporcione uma atmosfera de fantasmagoria na saída do cinema. Pela desconfiança frente ao que vemos e ouvimos, tudo parece sofrer pressão de uma certa negatividade, de um “no hay banda”. Um suspense morfológico: desconfio dos contornos e dos limites das superfícies. O clima solar de praça no sábado, repleto de famílias, primeiros encontros e bolhas de sabão é atenuado por zonas de assombro. Em Sang-Soo a via é outra: planos mais abertos e frontais, longos, que raramente “dançam” por ocorrência de um zoom-in inorgânico. As imagens são planificadas. A sala de cinema vibrava com esse filme como se assistisse à novela das nove: talvez pela personalidade insólita da personagem de Isabelle Huppert, que tem uma função antes formal do que narrativa. É como um catalisador da cena que nos dá a ver a materialidade das palavras. Sendo estas submetidas a processos de interpretação, têm seus sentidos existenciais revelados, o que evidencia a impossibilidade de uma “tradução objetiva”. As estruturas desses filmes banem por completo o regime de representação. Eles nos fazem, na verdade, reformular nossos vínculos de atenção com o mundo. Sugerem um questionamento sensorial, suspendem a adesão direta ao que nos circunda.
Tardes de curiosidad
Luiz Fernando Coutinho
Quando realizamos a entrevista com Leonardo Mouramateus, fiquei particularmente intrigado com a revelação – quase anedótica – de que nosso entrevistado, atualmente, assiste a poucos filmes: “acho que hoje em dia eu pego um filme e moro nele, em vez de ficar vendo vários”. Não porque essa postura contraria, em certa medida, a lógica produtivista de uma cinefilia que se justifica por acumulação de filmes vistos, mas porque eu mesmo me encontrava – e ainda me encontro – em uma situação parelha. Me pergunto se isso se explica por uma indisponibilidade minha (de tempo, por exemplo) ou se responde a uma forma de se relacionar com o cinema, de maneira geral, e com certos filmes, em particular. Tardes de Soledad, o último filme de Albert Serra, me fez retornar a essa questão. Dias depois de tê-lo assistido, o documentário sobre o toureiro Andrés Roca Rey e suas jornadas de tauromaquia conserva sua marca em mim. Mais do que isso, ele me lança para fora dele e para fora de mim mesmo (eu que nunca me interessei pela tradição da tourada): começo a ler Morte ao entardecer, de Hemingway; descubro os textos de Michel Leiris sobre as corridas (destaque para “a literatura como tauromaquia”); leio André Bazin escrever sobre a liturgia e o sentimento religioso que acompanha a “tragédia tauromáquica”; releio o capítulo de História do Olho no qual um toureiro tem o crânio perfurado pelo chifre de um touro e o olho direito dependurado de sua órbita. Hoje, talvez seja tudo que eu peça de um filme: que ele me desperte uma curiosidade visceral, uma sede inconsequente de saber mais, uma sensação permanente de estar em movimento, mesmo que em direção à morte. Em Tardes de Soledad, os cinegrafistas de Albert Serra, munidos de lentes teleobjetivas, perscrutam o face a face entre o toureiro e o animal como se ali buscassem um lampejo de beleza trágica que só poderia existir por intermédio da câmera: será a curiosidade deles que transborda quadro do filme e me contamina?
Se render ao “não expressável”
Maria Sucar
4:30 da manhã de um sábado;
O tempo chuvoso anunciando uma brisa fresca incomum;
O sol saindo tímido por meio das nuvens carregadas;
Cinco de nós em uma van com talvez outros oito;
Parada para tomar um café e comer algo em São José do Mipibu;
Seguimos o rumo em direção a divisa do Rio Grande do Norte com a Paraíba;
Programação de sábado: Trilha da Pedra da Boca.
Comprei um celular novo há não muito tempo e finalmente tive acesso a uma câmera decente. Parte da minha animação para o passeio estava no fato de que poderia fotografar o quanto quisesse, o que quisesse. Refleti que era uma maneira de me aproximar da atividade das imagens, trabalho no qual tenho me dedicado de forma muito sutil e distanciada, observando e comentando. Fotografar seria ali a possibilidade de assumir uma postura ativa para com as imagens. Um adendo relevante a se fazer é que assumi a monitoria das matérias de “Estética Filosófica” e “Crítica de Arte” na faculdade, o que me colocou ainda mais de frente às reflexões da experiência sensível e da atuação da arte, bem como tornar inteligível todas essas situações. Fotografar, então, seria uma forma de me aproximar ativamente das imagens para depois dissecar a experiência através da escrita. As fotos foram feitas, em abundância, mas a parte da inteligibilidade da experiência segue escapando. Quando tento escrever sobre, me faltam palavras. A frustração dá espaço a uma obsessão, em que o distanciamento é impossível. O fato é que me senti extremamente tocada, até transformada. Não sei se já havia colocado meu corpo a prova como coloquei e sentia constantemente maravilhada com minha pequenez e a fragilidade da minha vida perante toda a grandeza da natureza. Nada do que escrevo faz juz, o que também me parece ecoar num desafio próprio da crítica. Incessantemente tento fazer sentido da situação através das palavras, apenas para assisti-las escorrendo pelos dedos. A natureza segue indomável. No fim só me resta a experiência estética e algumas palavras.
Depois de Babel
Nicholas Correa
No início deste mês, houve a primeira Sessão Babel na Cinemateca do MAM – Rio, uma sessão que reuniu oito curtas com pouca ou nenhuma difusão no circuito brasileiro (To Brasil de Ute Aurand, Disappearences de James Edmonds, Mar de Coral de Elena Duque, Ashes by the name is man de Ewelina Rosinska, Materia Vibrante de Pablo Marín, Ojitos Mentirosos de Elena Duque, Duna Atacama de Vinícius Romero e Sunprints 1, 2 e 3 de Barbara Sternberg). Todos são trabalhos recentes, realizados nos últimos dois anos, e foram selecionados conforme um recorte que valorizava as possibilidades de disposição da montagem. Em uma das notas do programa, a questão do corte era trazida à tona por uma fala de Elena Duque na ocasião em que ela mesma havia programado uma sessão durante um seminário em Portugal. Duque também traz à tona, tanto em seus filmes quanto na sua fala, a questão das pinturas trompe l’oeil e, com ela, um duplo aspecto de suas imagens. Há um suporte material palpável e tangível nas suas texturas e manipulações, mas também existe o “engano”, a parte das imagens que tende à abstração e alude aos fatos mentais das ilusões de ótica. Essa tensão entre o que é material e abstrato percorre todo o recorte da sessão. A dinâmica de montagem, como bem informa as notas da sessão, abre margem para uma exploração das próprias questões ontológicas do cinema. Uma dessas questões, a articulação entre o material e o ideal, por vezes, se dá por via da montagem. Em Materia Vibrante, por exemplo, podemos ver uma imagem quase onírica de uma construção perdida em um mar de vegetação ser sucedida pelas linhas de perspectivas mais do que evidentes em um bloco de apartamentos, um jardim etéreo seguido de precisão arquitetônica. Em outro momento, certas características do espaço só podem ser aludidas por uma sombra projetada no chão. Todos os filmes do programa são gravados em película (com exceção de Duna Atacama), o que fornece um ponto de partida para que todo tipo de contraste possa ser estabelecido, seja nas pinturas de Elena Duque, nos movimentos furtivos em Disappearences ou nas telas digitais de Ute Aurand. A intuição partilhada pela sessão seria a de que é na investigação desses limiares, seja nas distâncias imagéticas unidas pela montagem ou na fixação pela materialidade dos meios de registro, que parece se concentrar esforços artísticos dos cinemas “experimentais” (um termo cada vez mais impreciso) que ainda contém algum caráter modernista, margem para descoberta formal e sinalização de futuros possíveis.
O ciclo da palavra
Renan Eduardo
A maioria dos cinéfilos tem sua obsessão de momento. Seja um diretor, um ator, um movimento ou um “tema”, minha vida como espectador sempre passou por esses mergulhos: Glauber Rocha, cinema estrutural, Paula Gaitán, Brian De Palma e por aí vai. Ser cinéfilo é ser obsessivo? Talvez. Mas, como costuma lembrar minha amiga e redatora Ana Julia Silvino, a vida é cíclica. E [penso que] acabo de completar mais uma volta. Alguns anos atrás, criei um método para quando estou sem criatividade para escolher filmes: seleciono um diretor ou diretora e, ao final do dia, assisto a qualquer obra sua que me chamar atenção. Dois anos atrás, fiz isso com Marguerite Duras; hoje, faço com Straub-Huillet. Duras trabalha a ação da palavra; os Straub, a palavra em ação. Ambos compartilham procedimentos similares: câmera fixa, atores imóveis como estátuas, rígidos como minerais, e uma aposta na musicalidade da fala. Em India Song (Duras, 1975), nota-se a musicalidade da palavra ritmada junto a um piano de notas harmoniosas e calmas que movem as ações dos personagens de fora da diegese para dentro. Já em Othon (Straub-Huillet, 1970) ou Antígona (Straub-Huillet, 1992), a palavra é friccionada quase como um ruído que briga por espaço na inteligibilidade. Enquanto Duras separa, Straub-Huillet colidem. India Song isola os personagens burgueses da Índia colonial, Antígona choca a Grécia antiga com a modernidade. Não se trata do fim do ciclo, mas de um recomeço. Quase como um trabalho pessoal e interno de curadoria em criar associações onde não parece haver.