Tocar o artifício sem tirar os pés do chão 

Um desfile abre o filme. Um pequeno cômodo de uma casa serve como tapete vermelho no qual diferentes corpos caminham. Mulheres gordas, trans, magras, negras e brancas, com estilos alternativos e outros mais sofisticados preenchem os espaços da residência. Ao redor, fotógrafos e pessoas com seus celulares tiram fotos e, a cada clique, um flash cintilante pisca rapidamente na tela. O efeito momentâneo e fugaz, é suficiente para despertar a atenção para aquilo que atravessa o quadro sem deixar de lado o desenrolar cênico. A sensação de assistir a uma encenação comum e reconhecível (o desfile ou as conversas em baladas e na casa das personagens) e ser interpelado pelos efeitos dos artifícios em cena, é a tônica que rege Salomé (André Antônio, 2024), filme que mistura a vivência urbana do Recife com a história religiosa sobre uma princesa da Judéia que pediu a cabeça do profeta João Batista após uma dança em um casamento — mito que intitula o longa.

Boa parte do filme se concentra em Cecília, protagonista que chega de São Paulo para passar o fim de ano na casa da mãe, Helena, em Recife. Tudo muda quando ela se aproxima e se apaixona por João, colega de infância, que além de apresentá-la ao loló em uma festa, revela que faz parte de uma seita para trazer de volta a princesa Salomé. Em barganha com alienígenas misteriosos, o esquema para reviver a princesa consiste em oferecer dinheiro e uma desconhecida substância verde, que se torna também o principal vetor da obsessão de Cecília por João. Ao longo do filme, acompanhamos a paixão de Cecília se desenrolar nos encontros com João, fofocando com as amigas, em transe nas festas, no sexo, e no encontro com esse outro mundo das criaturas que buscam pela Salomé. 

Em meio a esses momentos místicos, a assinatura do artifício retorna para destacar sensações de seus personagens diretamente na tela. O uso do loló na balada transforma o encontro entre o casal de uma maneira que dá a ver o efeito da droga no olhar de Cecília e, por sua vez, na fruição fílmica. Quando Cecília cheira a lata, a câmera lenta borra a sua visão e congela a imagem. O som dos graves são abafados, a textura das cores do ambiente se transforma, enquanto o filme se concentra no rosto e no olhar chapado da protagonista. Posteriormente, na cena de sexo entre os dois algo semelhante acontece: também precedida do uso do loló, elemento central que virgula o filme, e após um beijo grego em plano-detalhe, aparece o rosto de Cecília em prazer com o ato, remexendo o cabelo e gemendo por cima de João. Menos do que transformar a cena em um acontecimento simbólico de representação sexual entre um corpo trans e um corpo cis, a imagem se volta para as sensações incorporadas pela própria trama e seus elementos em jogo — a droga, a paixão, o tesão. 

Notemos também que a droga não é um elemento moral de fuga da realidade ou de destruição da juventude. Trata-se, na verdade, de um elemento que circula o cotidiano dos personagens e está ali para intensificar as relações e aproximá-los para o flerte e para a paixão. Cecília persegue a sensação máxima que João pode lhe oferecer com a substância, assim como João compartilha o loló pelo princípio comum do ato de compartilhar porque gosta do flerte.

Em outra sequência, Cecília está tomando um drink com sua prima e a namorada, dentro de uma piscina na laje. Na imagem, ela suga o líquido com o canudo e ouvimos o conhecido som de quando não há mais líquido dentro do copo. Enquanto na cena de abertura, o artifício imagético surge como o efeito do clique da foto e o flash na imagem, aqui o som do canudo que se destaca. O efeito gerado pela ação banal do personagem aparece como destaque na faixa sonora fora de campo, o que poderia passar despercebido em outra abordagem. É quase como uma brincadeira que leva a sério a cena a ser filmada. Existe um tom de ironia nisso tudo, um drible na percepção, na convenção, na representação convencional e natural das coisas.

A artificialidade contamina de vez a trama na sequência em que João conta sobre os seres com coletes espaciais, pálidos e calvos, que usam ele para buscar Salomé e encontrar a dita substância. A apropriação é mais nas aparências do que na estruturação de um mundo à parte. É também neste núcleo em que o filme se entrega para uma encenação erótica e sensual. A cena se dá por uma câmera lenta em que um brilhante verde neon contorna o interior da mansão desses seres. João, com mais alguns colegas, trabalha como garoto de programa e filma cenas de podolatria e pegação com esses seres para uma espécie de Only Fans daquele mundo. 

Mundo este que se desenrola numa quebrada de Recife onde jovens de cabelo na régua e bigode fino se relacionam e um casal lésbico celebra um almoço de reencontro ou o Natal em um banquete com mães preocupadas com o destino de suas filhas. A aliança entre esses dois ambientes (o sci-fi místico e a quebrada) supostamente díspares se dá por uma câmera que se coloca, caminha e se entrega aos diferentes personagens, rostos, relações e sensações trazidos ao longo do filme. 

Dessa forma, André Antônio não tira o pé do chão para trazer os artifícios e os efeitos fílmicos abordados dentro do quadro. É interessante como a montagem contrasta esses dois ambientes (o ambiente noturno da balada corta para o almoço em família, o uso do loló corta para a mãe acordando a filha) menos como um aceno irônico da comédia, e mais para um estabelecimento dos ambientes que os personagens convivem naturalmente. Para o filme, é o trânsito entre o artifício e o cotidiano, como disse uma das pessoas presentes na platéia na exibição especial do 14º Olhar de Cinema, uma maneira de expandir a imaginação e a sensação, brincar com pressupostos, contradições e gêneros dentro de um universo periférico recifense.

Autor

  • Egberto Santana

    Formado em jornalismo pela Unesp de Bauru em 2021, é co-fundador da Revista Descompasso, repórter correspondente de Poá na Agência Mural de Jornalismo das Periferias, redator freelancer e crítico de cinema em vários cantos. Possui textos publicados no Plano Aberto, Persona Unesp, Corpo Crítico (2020) Mostra Cinema do Presente (2021), Nicho 54 (2021) e no Laboratório Crítico da Revista Crítica de Cinemas Africanos (2022)

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