Last Updated on: 1st julho 2024, 02:15 pm
O filme começa com uma linha. Essa linha é formada por duas outras ligadas em paralelo pela cor amarela que as preenche. À medida em que flui pela tela, a linha amarela se organiza escrevendo o título do curta: Pasta (Tomás Welss, 2010) – e é isso o que ela mesma representa. A linha longa do espaguete, depois de se desenrolar da escrita, ocupa o centro do quadro. O espaço branco em cena se expande, tomado por novas linhas que rabiscam uma sala, quase infinita sobre a tela alva, com uma porta que delimita um único limite espacial visível. No centro do cômodo, o espaguete, elástico, liga pela boca um casal sentado à mesa em um restaurante recém congregado, a configuração à la A dama e o vagabundo (1955) sonorizada com suspiros e ruídos salivares tão intensos que se aproximam do grotesco. Fome.
A brutidão, primeiro insinuada pelo som, entremeia-se na tessitura da cena pela convocação de outros fios – mais urgentes, menos precisos – que passam a riscar o espaço frenética e dinamicamente quando o espaguete vira objeto de um cabo de guerra entre as personagens. Os gemidos de prazer tornam-se grunhidos do esforço tresloucado pela cobiça de devorar a linha – nesse ponto, transmutada. Não mais macarrão: agora língua. O ambiente escurecido, tomado pela energia pulsional do apetite, espelha o peso e o horror sugerido pela banda sonora quando o que se desenha nesse mundo de rabiscos é a vontade antropofágica violenta. As bocas se doem quando a língua puxa para o lado oposto; o molho do macarrão é também sugestão de sangue.
A crueza brutal desse desejo primeiro, canibal e devorador, percebe prazer na disputa pela linha invencível, excitada pela dor e violência. O restaurante indefinido vira algo como um quarto de motel, desenham-se sapatos e gravatas flutuando em meio aos nós da língua-espaguete. O cabo de guerra agora é beijo – o tesão não mais pela linha, mas pela vontade de engolir um ao outro; os suspiros, esses de prazer, ecoando na cena sexual riscada no filme. A dinâmica das linhas desse universo se funda no balanço nessa corda bamba do desejo – de engolir e consumir aquele mundo.
Em outro filme da mesma sessão [Cineteca Nacional do Chile – Pérolas da Coleção], nomeado 15 mil desenhos (Carlos Trupp e Jaime Escudero, 1941), que parte de um universo animado apresentado já de pronto construído, inteiro e fechado – em um sentido de solidez e concretude – a abertura para a assunção do gesto de criação interpela o filme na metade: das imagens bem acabadas, com cenários elaborados em preto e branco que servem de fundo à caminhada das personagens que se movem com fluidez trabalhada pela tela, somos postos frente à uma folha de papel amassada pelo peso da mão que não vemos e que risca as linhas, a pontiagudez do grafite deslizando para rascunhar um quadrúpede.
Desenhado na mesma porção central de mais outras milhares de folhas de papel – algumas que deixam vazar os números anotados nas bordas, índice da organização desse trabalho manual – o quadrúpede incompleto e não-identificável ensaia os mesmos passos que os corpos bem delineados ilustram no espaço. A partir da organização das folhas em sequência, preenchidas com alguma exatidão pelas formas que se alteram minimamente uma frente à outra, somos levados a enxergar – e acreditar – que o animal caminha. O movimento é sugerido (logo, criado) por variações de frames por segundo, dobrando a operação do cinematógrafo sobre ela mesma. 15 mil desenhos, que carrega no título um marcador do volume do trabalho de criação de universos, tem sublinhada nas entranhas a receita do feitiço de animação: o gestaltismo que cria os gestos.
O movimento de assumir o funcionamento da máquina, que aproxima esses dois filmes separados temporalmente por sete décadas, sublinha isso que, no desenho animado, já está necessariamente posto à frente. O mundo animado não é o mesmo que o nosso – concreto, material (ainda que o animado também possa ser, em um sentido transversal a esse). As leis da física não se aplicam necessariamente à terra das linhas. Tudo é e não é de forma mais frontal, o truque assumido e colocado à frente pela qualidade própria das imagens rabiscadas. E tudo pode ser – o devir da linha, elevado ao infinito. As imagens se transformam livremente e a crença nas formas e figuras animadas tem no sangue a consciência da descrença no realismo delas mesmas.