Rasgar, romper e recriar

Uma criança rasteja pelo solo cinzento de um campo seco. Esse corpo vaga só, com o tronco e os pés descobertos. Como um caçador que espera pacientemente um momento de debilidade de sua presa, ele se coloca à espreita de algo ou alguém. A transformação de Canuto (Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, 2023) ensaia seu discurso através do registro dessa presença – também conhecida pelo nome de Álvaro – que, pouco a pouco, é batizada como Canuto. Mais à frente na narrativa outros membros da comunidade Mbyá-Guarani também usufruem do poder de possuir o nome “Canuto”. O filme comunica sua intenção logo nos primeiros minutos: encenar a vida e morte de um homem assombrado por um espírito da mata densa, que se transforma em uma onça fascinante e perigosa. Construindo um jogo entre ficção e realidade, o filme ocupa as ruínas de uma construção inacabada e os rastros da memória do destino de Canuto para engendrar um tempo subjacente nas raízes da imagem. 

Considerando a primeira metade do filme, a palavra que melhor define a narrativa é: experimento. Conversas sobre o processo de criação, a produção de uma escultura de uma onça, o modo como a tela de projeção é posta nas vigas de madeira da escola, o casting e a maneira constante com que o dispositivo câmera é relevado, antecedem uma espécie de ritual, que a princípio parece ser sempre mediado por essa equipe de filmagens infiltrada na aldeia. Uma proposta de reenactment excessivamente controlada, onde os conceitos e as intenções se sobressaem à imagem. 

Entretanto, em um momento específico, a tela branca, onde o filme seria projetado para todos da comunidade, é movida por uma ventania e se desamarra das vigas, voando por alguns segundos no ar e relevando, atrás de si, todos os segredos incapturáveis que se escondem abaixo das copas das árvores na mata. A partir daí, algo parece escapar do controle da câmera e do roteiro e tomar o seu lugar de direito na imagem através de uma vibração. O filme encontra sua força narrativa no momento em que classifica a mediação como meio, mas nunca como fim, assumindo que existe algo nessa transformação que jamais poderá ser vista. 

Em meio ao registro cotidiano da própria concepção e produção do filme, alguns alertas são contrariados, dando vazão para que o espírito que se apoderou do corpo de Canuto também participe desse experimento. O ator escolhido para interpretar a vida adulta de Canuto começa a comer carne crua durante as filmagens, buscando distanciar-se cada vez mais da figura humana. No entanto, no início do filme, alguém diz que comer muita carne, e principalmente carne crua, pode despertar o espírito da onça que todos têm dentro de si. Assim, a construção narrativa nos mostra que o que aconteceu com Canuto, embora pareça um fato fantástico, pode acontecer com qualquer Guarani. E de fato, quando todas as expectativas estão na transformação do ator que interpreta um personagem, é um membro da equipe do filme que se transforma. O espírito da onça, diferente do cinema, não pode ser controlado.É devido a isso que, ao final, quando o ritual pressentido finalmente toma forma e Canuto é morto, os interesses do filme já não importam; a esse foi relegado o caráter de inacabado. O desejo inicial de mostrar uma verdade e revelar os segredos que orbitam a transformação de Canuto são enterrados junto ao seu corpo. E, na cultura Guarani, os mortos não podem ser incomodados. O que resta, então, é reaproveitar as madeiras, reconstruir os destroços e planejar um futuro através da escola recém construída. A comunidade e suas pulsões se sobressaindo ao cinema. Um recordatório de que a imagem não deveria ser um objeto de captura do presente e do passado, mas uma possibilidade de enfrentamento da memória.

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