Ainda que estruturado por um farto orçamento e um primor técnico aos moldes de um “padrão internacional de qualidade” (ou daquilo que se espera de um cinema brasileiro “adequado” à composição de imagem e audibilidade sonora), Ainda Estou Aqui (Walter Salles, 2024) se propõe a ser um “filme menor”. Uso o adjetivo “menor” sem nenhum caráter depreciativo, pois penso precisamente no microcosmo que o filme circunscreve em volta de uma casa, ou melhor, da casa regida por Rubens e Eunice Paiva, visto que grande parte dos acontecimentos giram ao redor da residência do casal e de mais seis filhos. A praia de Ipanema onde os adolescentes jogam vôlei, a rua onde os meninos chutam bola e a escola das crianças são alguns dos arredores que a narrativa contempla, contudo, a dramaturgia fílmica é centrípeta, sempre converge para um centro: a casa dos Paiva.
Ao começo do filme, marcado por alguns contornos de suspense em que os personagens parecem estar à espreita de algo acontecer — o frequente barulho de carros de polícia e helicópteros sobrevoando a praia, o olhar desconfiado dos personagens para o fora de campo e a constante presença de caminhões e soldados do exército nas ruas cariocas são alguns dos exemplos possíveis —, a casa e seus habitantes ainda carregam um tom de jocosidade, de leveza e comunhão familiar marcado pela iluminação amarelada que sublinha algo como a memória áurea de um tempo. Entretanto, uma drástica mudança narrativa demarca um novo estilo de encenação para aquele espaço que nunca mais será filmado da mesma maneira. Mais do que o clichê exaustivamente repetido de que “a casa é um personagem do filme”, os espaços em que os atores habitam parecem traduzir a psique dos sujeitos ali representados. Nesse microcosmo, há um notável trabalho de composição cênica que modifica essas locações junto aos personagens, sobretudo de Eunice Paiva (Fernanda Torres), que não é só a alma do filme, como também o coração da residência.
Ainda no primeiro terço do filme, a casa é invadida por policiais à paisana que conduzem forçosamente Rubens Paiva a “prestar depoimento”. Enquanto o “depoimento” acontece, alguns capangas permanecem na casa junto a Eunice e as crianças. A câmera, que antes passeava como um olho onipresente por toda a casa e por seus residentes, toma uma posição e se fixa em Eunice. A dramaturgia, agora, passa a se organizar em torno da matriarca e, por consequência, a casa se torna impregnada por sua psique; o filme deixa de ter vários pontos de vista, sobretudo o das crianças, para tomar uma posição ao lado de Eunice. Apoderada por seus algozes, o espaço passa a ser habitado pela penumbra. A luz solar mal entra; o burburinho jocoso dá lugar a esparsas e melancólicas notas de piano. O espaço, portanto, não configura um personagem, mas uma matéria maleável que se molda junto a quem o habita.
Contudo, há algo curioso nessa postura. Ao passo que parece haver uma força centrípeta que converge todo o filme para a casa, é a partir desse epicentro que o filme vê seu exterior. Ainda Estou Aqui apostar em uma narrativa centrada nos arredores de uma casa determinada é seu grande trunfo, tal qual seu deslize. Sob esse aspecto, o filme é preciso em sua execução, tão preciso que em alguns momentos torna-se até burocrático e convencional. Tanto o trabalho de mise en scène — os objetos fora do lugar, a luz do sol que passa a incidir menos sobre a casa e os tons mais “sóbrios” nos figurinos dos personagens —, quanto a própria dramaturgia, encarnada sobretudo na atuação de Fernanda Torres, convergem para o que de melhor uma narrativa transparente pode oferecer. Sua forma carrega poucas rusgas, talvez nenhuma, e uma certa delimitação de sujeitos (fílmicos e históricos) converge sua discussão para uma perspectiva política demasiadamente restrita.
Sob esse ângulo, Ainda Estou Aqui lança mão de uma articulação política que transita entre o público e o privado — questão que me parece ser cara ao cinema contemporâneo, sobretudo brasileiro, mas não só. A condição a que a família é submetida é fruto de uma política que age do exterior para o interior; assim como o que vemos desse mundo social é mediado pelo olhar daqueles sujeitos — há, inclusive, uma evidente demarcação de classe nessa elaboração sobre a história da ditadura brasileira. Por diversos momentos, somos informados da situação política do Brasil por meio da TV e de jornais, mas sempre mediados por algum personagem que consome tal conteúdo, ou seja, vemos aquilo que esse sujeito vê. Nesse sentido, o filme deixa escapar a perspectiva que almeja dizer a respeito de uma “questão nacional” ou de uma “realidade brasileira” para deflagrar suas vísceras ideológicas. Em entrevista para um jornalista, já ao final do filme, Eunice fala com o repórter sobre o desaparecimento de seu marido nos porões do DOPS e ressalta o quanto Rubens era um bom pai de família, honesto e pacifista. Mas e se não fosse?
Ainda Estou Aqui, nas entrelinhas do filme, marca sua posição como contrária aos movimentos de rebeldia que aparecem nos noticiários ou em diálogos pela casa. Em dado momento do filme, Eunice conversa com um dos amigos de seu marido que reitera enfaticamente que Rubens não estava envolvido com luta armada e que a atuação de Paiva contra a ditadura se resumia em distribuir cartas de exilados que chegavam ao Brasil para os seus respectivos familiares. Desse modo, o filme reivindica para si e para seus personagens a postura de uma classe média “civilizada” que enfrenta a ditadura não pelos meios da “barbárie”, como sequestros de embaixadores ou luta armada — acontecimentos que somos informados por meio de personagens assistindo jornais ou ouvindo rádio —, mas sim por uma pacífica distribuição de cartas para entes queridos ou pelo consumo de arte tida como “subversiva” pelos censores da época.
O filme é inteiramente atravessado por menções diretas ou indiretas ao movimento tropicalista, bem como recheado de “easter eggs” revolucionários como um pôster de A Chinesa (Jean-Luc Godard, 1967) e imagens de Ernesto Che Guevara coladas na parede do quarto de uma das filhas. Entretanto, ainda que margeado por sujeitos rebeldes, o que esperar de rebeldia de um filme como esse? O apaziguamento de tais figuras revolucionárias, sobretudo Che Guevara, ecoa na própria compreensão política do filme. Ao reafirmar a posição dos Paiva enquanto “democratas do bem”, em oposição aos “terroristas da luta armada”, e ao tentar resolver suas intempéries pelos meios legais do próprio Estado, Ainda Estou Aqui parece condenar aqueles que tomam uma posição contrária. É como se, para o filme, alguns modos de resistência fossem mais “moralmente corretos” do que outros.
Nessa perspectiva, é curioso notar como o filme trabalha a inocência dos filhos pequenos em relação à ditadura. Em diversos momentos, ou as crianças são privadas de ouvir notícias no rádio ou os adultos de privam de falar sobre política na frente delas, tal qual não se pode falar sobre política na frente delas. De maneira similar a elas, somos restringidos a ver o mundo que cerca os personagens somente pela perspectiva democrática desses determinados personagens sociais. Embora por alguns momentos se esforce para debater em uma perspectiva macropolítica, Ainda Estou Aqui volta reiteradamente, em termos ideológicos, ao seu epicentro: os Paiva. O que surge como trunfo de uma dramaturgia que olha para o mundo a partir de uma casa derrapa ao enfrentar uma alteridade manifesta em outras possibilidades de ação política. Em certo ponto, durante a prisão de Eunice no quartel do exército, um dos soldados que a acompanha diz algo como: “gostaria que você soubesse que eu não concordo com isso”. Tal diálogo entre algoz e vítima, assim como a indeterminação do objeto, soam como um grande sintoma da acomodação política (e formal) do filme. O que seria o “isso”, afinal de contas? As torturas, a prisão ou o regime em si? Não sabemos. Ainda Estou Aqui é um filme contrário à ditadura até onde seus bons costumes de classe média e seu modelo de produção permitem; é crítico à ditadura até onde uma obra financiada por uma empresa que endossou tal regime pode ser.