Last Updated on: 3rd outubro 2024, 04:17 pm
O desfecho de Os pássaros (Alfred Hitchcock, 1963) já nos dava uma pista: a única chance de salvar o mundo estava diretamente ligada à reestruturação de uma unidade familiar, um elo disposto a restaurar o enigma bíblico do começo dos tempos — um homem, uma mulher, a criança… e um animal. Sim, um animal. Pois na última cena de Os pássaros, quem sela o abandono da casa tomada pelos monstros é justamente o garotinho que pede ao senhor Mitch Brenner que o passarinho inocente seja levado junto à família: “ele não machucou ninguém”, diz o menino, com olhar marejado, esperando a autorização do líder da prole. Já para M. Night Shyamalan, cineasta nascido em Mahé, no estado de Kerala, na Índia, a inserção do signo cristão salvacionista de Alfred Hitchcock parece um tanto quanto invertida: em Armadilha (2024), o líder da prole é o animal, e a salvação do mundo tem muito mais a ver com a captura da criatura do que com a necessidade de juntar-se a ela.
Dos últimos quatro filmes de M. Night até aqui — Vidro (2019), Tempo (2021), Batem à porta (2023) e Armadilha (2024) — este último é o único que parece menos afeiçoado a uma ideia de sagrado como dispositivo; de força mística que envolve a narrativa em si. Também pudera: se de algum modo todos os últimos trabalhos de Shyamalan lidam com a ideia de finitude (o cerco dos heróis, o cerco do tempo ou o próprio “fim dos tempos”, respectivamente) é porque restou aquela que, talvez, fosse a última concepção fundamental de “sagrado” para o cineasta, justamente a ideia de família. Ou melhor, a ideia de elo, de laço. Afinal de contas, se estamos diante de um realizador que desenha o mundo como uma espécie de território corruptível, sujeito à toda e qualquer variação mística e mitológica, é também porque concentra neste mesmo mundo um núcleo basilar incumbido de decifrá-lo: a esta unidade básica é que chamamos de família, seja ela qual for — da síncope pai e filho de O sexto sentido (1999) ao casal gay de Batem à porta (2023).
Em Armadilha, Cooper (Josh Hartnett) e Riley (Ariel Donaghue) formam uma família, mas não uma família exatamente comum, e sim uma família de dois. Pai e filha que são, cada um representa um lastro frente ao objetivo que se instaura no mundo inconfundível do filme. Para Riley, a missão está em chegar cada vez mais perto de Lady Raven (Saleka Shyamalan) — sinal esse que o filme já anuncia em suas primeiras cenas, no brilhante registro da dupla em meio à multidão, vendo a cantora passar pelos fundos do teatro —, já para Cooper, o objetivo estabelecido é múltiplo, e se desdobra à medida que o tempo passa: ele está responsável não apenas fazer com que a filha adolescente cumpra com seu sonho, como também por fazer com que este sonho não interfira em sua outra missão: escapar ileso do local sem que ninguém perceba que ele próprio é um serial killer procurado. Daí talvez seja tão interessante pensar que Armadilha é, em si, uma série de derivas, não somente em termos narrativos, mas sobretudo em um sentido conceitual.
Se Shyamalan foi tão reconhecido por fazer de seus filmes uma espécie de puzzle — onde se juntam pecinhas até que elas formem uma figura evidente —, a pergunta que fica é, justamente, o que poderia ser feito quando esta estrutura de quebra-cabeças já está, de antemão, revelada? O que sobraria de uma narrativa na qual o verdadeiro vilão está revelado nos primeiros dez minutos de projeção e cujo elo estruturante dos nossos heróis (os ordinários Cooper e Riley, um bombeiro suburbano e uma adolescente vibrante que vai a um espetáculo pois tirou boas notas na escola) foi inerentemente rompido? Conquanto haja um segredo entre eles, um monstro que habita um destes seres — fazendo com que o suposto laço triunfal que tanto salvou o mundo dos personagens de Shyamalan esteja contaminado já de largada — a inocência de outrora estará quebrada. Lidaremos não mais com a mística do suspense, lidaremos, em essência, com a materialidade de uma realidade que, de saída, é mística por si só, em sua fundação.
Os trabalhos anteriores que fizeram de Shyamalan tão reconhecido nos direcionavam, como espectadores, a observar aquilo que nos fora apresentado em termos de imagem com outros olhos. A crença era uma questão fundamental, e comprar (ou não) a versão dos fatos e a luta dos personagens conformava um gesto de suspensão bastante profundo, uma vez que boa parte das estruturas narrativas de Shyamalan se instauravam não a partir de uma noção daquilo que não era visto, mas sim a partir de algo que já estava presente na tela mas que não era percebido. É o famoso to believe da Story de A dama na água. Crer ou não crer. Mas Armadilha, assim como Tempo e Batem à porta, faz o contrário.
Distante de qualquer noção de pureza, os personagens destes filmes estão conectados ao mundo não pelo seu ceticismo, e sim por uma noção de realidade, de aceitação. É o que traduz os invasores de Batem à porta (o mundo vai acabar!, é um fato, se ele é verdadeiro ou não, pouco importa), assim como os cientistas revelados no desfecho de Tempo. Por isso não espanta que Shyamalan, provavelmente o cineasta que melhor esculpiu rostos no cinema americano dos últimos vinte anos, tenha se tornado um artista cada vez mais gráfico, para não dizer bruto. Em seu fascínio pelo materialismo do quadro, muito menos que pelo extracampo, os filmes recentes do diretor oferecem a seus protagonistas a chance de expandir as habilidades dos atores ao limite — o que Josh Hartnett cumpre com maestria —, uma vez que os traços que compõem cada um dos personagens estão devidamente marcados na tela, inclusive em suas micro diferenças. Em suma, os trabalhos recentes do diretor desafiam a lógica irrestrita de seu passado: se os temas estão todos lá, como a crença, o elo, os monstros e a família, eles agora não mais esperam por um gesto de avanço do espectador frente aos personagens; o que importa em Armadilha não é, definitivamente, a suspensão. O que importa, antes de mais nada, é a suspeição. O jogo, portanto.
Armadilha é, talvez, o filme mais “classe B” de Shyamalan, com aquele ar de obra maldita, feita para público disperso e afeito à violências inescapáveis. Talvez por isso, haja uma noção de estilo cada vez mais dilacerante nos filmes do diretor, menos voluptuosa e mais gráfica, quimérica, torta (e daí é possível perceber o quanto da paranoia narrativa de Larry Cohen orbita a trama de Armadilha). Mas pensemos também em termos geográficos: ademais que o filme ocorra, grande parte, dentro de um espetáculo de música pop, toda ação está concentrada na periferia deste grande complexo. O personagem de Cooper, paranoico em essência, evita constantemente os locais mais ocupados. Para preservar seu disfarce, é preciso que ele se infiltre nos corredores do complexo, entre os seus pares de trabalho. Afinal de contas, o sujeito é um bombeiro, um funcionário público, um daqueles homens de capacete que, em meio à ação, mal são notados como sujeitos. Sua fantasia de homem ordinário, aliás, é tão à caráter que ele sabe até onde fica escondido o açúcar do cafezinho, na sala onde nunca havia antes entrado.
Dentre um pequeno segmento e outro, demarcado por cada vez que Cooper diz à Riley “preciso ir ao banheiro” ou “vou pegar sua camiseta!”, estabelece-se uma nova dinâmica, um novo caminho em meio ao labirinto de cimento fosco que são as entranhas daquele grande teatro. É nesse sentido que Armadilha, como já deveríamos saber de antemão, mais parece um jogo. Mas não um simples jogo de gato e rato, e sim um jogo dentro de um jogo… dentro de um jogo, ao melhor estilo Julio Cortázar. Poderíamos dizer que, tal qual um conto do escritor argentino, Armadilha se satisfaz em ser um segmento de vários segmentos, uma espécie de teste de força que está estabelecido entre a fantasia do personagem de Cooper e a virilidade da realidade, da quebra de seu disfarce, que paulatinamente se aproxima na mesma medida em que o setlist de Lady Raven avança.
O que se escorre dessa dinâmica é menos um filme psicologizante de monstro (que é aquilo que Armadilha poderia parecer em seus momentos menos inspirados) e mais uma brincadeirinha de gato e rato, ao melhor estilo Tom e Jerry, bem mais próximo a uma gloriosa comédia screwball de Cary Grant ou a um buddy film, cuja dupla seria formada por pai e filha, que a um thriller de Brian De Palma — ainda que os resquícios de Síndrome de Caim (1992) e Olhos de serpente (1997) estejam todos lá. Pensemos, por exemplo, em como Cooper se modifica a cada novo funcionário com quem interage no espaço; como rouba a roupa do cozinheiro da lanchonete; como passa rapidamente de “o pai do ano” (frase dita no filme) para um bandido meticuloso; como, em instantes, deixa de ser um mentiroso voraz (a cena maravilhosa em que conversa com o segurança interpretado por Shyamalan para que a filha vá cantar com Lady Raven) para tornar-se um herói ordinário, que salva uma garotinha que havia desmaiado através de seus conhecimentos de primeiros socorros. Cada novo case da narrativa de Armadilha é como uma nova porta de um casarão que se abre tal qual um conto de Cortázar, mesmo que, tanto em literatura quanto em filme, o monstro ainda esteja ali, escondido nas frestas e nas sombras, dentro de cada porta e compartimento, alternando-se entre criatura e humano, homem e lobisomem, estabelecendo sua personalidade duplicada.
Trata-se de um filme que está exposto nos porões do cinema, que se fabrica cuidadosamente a partir do andar destes não-espaços — as ações nos corredores, a relação substancial que há entre o fora e o dentro deste estádio, as várias sub-salas e compartimentos do complexo pelo qual o personagem anda enquanto a narrativa acontece —, reverenciando não somente às estruturas de um porão como também aos gêneros cinematográficos soterrados no porão da história (o horror B, a comédia pastelão, o filme dos monstros estranhos). Apesar disso, Shyamalan muito bem sabe que o jogo de gato e rato não nos basta, e é preciso que vejamos de fato o Pernalonga capturar o Coyote. É preciso que o monstro bata com a língua nos dentes para que provemos estarmos certos, que não há salvação mística para uma criatura que desfaz todas as leis, que não é possível que o “pai do ano” seja mesmo esta dócil criatura, preocupada com a filha, e ao mesmo tempo o sujeito que decepa cabeças. O que nos esquecemos, no entanto, é que é tudo um jogo, um jogo de dois — e aí vale lembrar que, por mais que o verdadeiro núcleo familiar apareça com mais de uma hora de projeção, o que realmente vale é o abraço derradeiro de Riley em Cooper, antes que ele seja capturado, já que, mesmo dividido, o elo permanece; mesmo que circunscrito à definitiva condição real daquele sujeito, não mais o pai, agora sim o monstro, a filha ainda precisa certificar-se de seu abraço, de seu aconchego. É porque, no fundo, somos todos ainda crianças, mais ou menos deformadas, mais ou menos malditos, mas crianças. E talvez seja apenas e tão somente por isso que, ao fim do filme, tudo o que Cooper necessitava era aproximar-se de uma bicicleta, para fazer com que o jogo continue rolando.