Ainda somos modernos?

Last Updated on: 8th julho 2024, 04:01 pm

Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro. Sessão de abertura do 8° Festival Ecrã. Sala lotada e uma abertura convidativa no espaço que atualmente está desconfortável por conta dos tapumes das obras relativas à recepção do G20, que ocorre no fim do ano no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A exibição marca a estreia de dois filmes que já se enunciam em uma relação íntima com aquele espaço, através dos arquivos e do urbanismo que atravessa a modernidade carioca do final do século XX e respinga no contemporâneo.

O curta de Vinícius Dratovsky, Aventura no cinema, é uma encenação filmada em película a partir de sobras de negativos cedidos pela cinemateca. A cartela inicial do texto nos diz ser um filme sobre amor, traição e tragédia. Já o longa de Bruno Safadi e Ricardo Pretti, Para Lota, é um filme carta, que tem como mote os escritos de  Lota de Macedo — arquiteta-paisagista e urbanista, responsável pelo jardim do Aterro do Flamengo — durante os anos de construção do parque e sua relação de lobby com o então governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda. As cartas de Lota são interpretadas vocalmente por Leandra Leal, enquanto no campo visual temos três grandes planos sequências da pista do aterro de noite, que condensam um travelling lateral da direita para a esquerda, iniciando no bairro Botafogo/Flamengo até os arredores do MAM, no centro do Rio de Janeiro. 

Ambos os filmes lidam com arquivo a partir de diferentes chaves, porém marcam uma relação arqueológica e transversal com as distintas temporalidades presentes em seus textos, sons, mídias e fotografias. Como repetido durante a apresentação, debate e conversas, os dois filmes são fantasmagóricos. Essa fantasmagoria perpassa a materialidade dos filmes, pela relação formal e em seus conteúdos. A voz de Lota encarnada por Leandra Leal e os antigos negativos degradados que foram filmados e revelados atualmente em  Aventura no Cinema traduzem esta operação nos filmes de Dratovsky e Pretti/Safadi. O curta de Vinícius tem uma premissa simples: uma mulher vai ao cinema assistir a um filme. Acompanhamos o percurso da personagem e sua espectatorialidade  com a obra em tela, ao passo que também também viramos espectadores deste meta-filme que recebe intervenções, por um tipo de efeito Kuleshov do rosto dessa mulher.


Still frame de Aventura no Cinema de Vinicius Dratovsky

Aventura no cinema se constrói em uma narrativa em abismo, a partir da sua montagem em espiral que borra as noções de tempo junto com o que vemos na imagem. Seja pela textura degradada dos negativos em complemento com o som, seja pelo desenho de som e pela interpretação vocal dos personagens, a mise-en-scène ou mise-en-abyme (Narrativa em abismo) cria uma sensação mista da obra ser uma espécie de memória fragmentada e dissolvida da personagem com o que ela mesma vê em tela. Observamos nesse meta-filme uma sucessão dos acontecimentos dessa memória: planos de um casal de jovens formado por um homem e uma mulher dançando num parque; um homem mais velho se barbeando de frente ao espelho que reflete o que parece ser o mesmo casal jovem dançando mais ao fundo nesse quadro; uma agressão feita por esse homem agora mais velho e em seguida a briga desse homem com um outro que se alonga durante o restante do filme, até que tudo se resolve em um assinato armado, assistido pela mulher na rua, ao sair do cinema.


Still frame de Aventura no Cinema de Vinicius Dratovsky


Induzidos pela cartela inicial, a ideia da traição toma conta da motivação da violência. Mas, para além disso, o filme não se ancora em nenhum índice concreto dessas motivações. O que é ressaltado, pelo contrário, é ofator memorial e dissolvido que se relaciona com a utilização do arquivo em decomposição. Nesse sentido, a materialidade da película também imprime junto com o corpo dos atores, com atuação vocal (o sotaque de um “R” vibrante), um registro filiado ao cinema marginal. Seja pelas repetições causadas pela montagem ou também pela iconografia setentista da direção de arte (maquiagem, figurino e objetos de cena). Assim, Aventura no cinema compreende o forte grau de saudosismo de narrativa e reforça sua estrutura por meio da encenação e do uso auto-evidente do material fílmico cedido pela cinemateca do MAM. 

O fetiche nostálgico é corpo e espírito do filme, e se resolve no momento em que a personagem que só observava a fita-memória se depara com o assinato supracitado e decide seguir em frente. A relação voyeurística e nostálgica do filme parece reforçar uma distância aqui no corpo da personagem que apenas mantém essa relação memorial e afastada desse acontecimento/objeto memorial. 

Já em Para Lota a arqueologia se dá por uma relação entre  a imagem atual do aterro e a interpretação sonora das insistentes cartas de Lota de Macedo acerca da construção do parque. Enquanto a dimensão espacial vai se solidificando com o lento travelling lateral, que dá conta de toda a extensão do aterro durante o período do filme, a dimensão política dessa obra atrasada vai sendo revelada a partir desse texto. O Aterro à noite, onde vemos em sua maior parte a dimensão do Jardim, suas árvores e espaços vazios, é apresentado também pela iluminação espaçada que assombra mais do que revela o paisagismo. Assim, o filme enfatiza as cartas deixando para nossos olhares percorrerem junto a esse longo travelling o modernismo carioca. As cartas são dos anos 1960 e iniciam anteriormente ao golpe de 64, atravessando os primeiros momentos da ditadura cívico-empresarial-militar.


Still frame de “Para Lota” de Bruno Safadi, Ricardo Pretti

O trabalho ganha um tom dramático através da atuação de Leandra Leal junto com o desenvolvimento das cartas. E, à medida que as obras atrasam, as burocracias enrolam e o projeto inicial fica em risco por conta das eleições do estado da Guanabara de 1965, o tom formal das cartas dá lugar para um tom mais pessoal, estressado e ansioso. Para além dessa estrutura, o filme tem ainda outras articulações formais: no início uma cartela, que contextualiza a construção do parque e do envolvimento de Lota, soma-se às fotos que mostram a antiga Praia do Flamengo aterrada previamente à construção do parque. Após esse breve contexto, o plano sequência se apresenta junto às cartas. Essa sequência é cortada por três intervenções rápidas em tela preta com a música “Praia do Flamengo” de Carlos Gonzaga (1960), uma marchinha descontente do aterramento. 

Aos poucos compreendemos o conteúdo da marchinha por conta da sua repetição ao longo do filme. Primeiro ouvimos: “Adeus praia do Flamengo. Só a saudade ficou no lugar”. Depois: “Adeus Flamengo. O prefeito mandou aterrar”. A marchinha serve como uma ampliação do contexto da política urbanista daquele período, mas também serve como um contato direto com arqueologia proposta pelo filme, visto que na volta ao plano noturno do aterro, o desenho de som que previamente era fundado por uma espécie de ruído branco é tomado por um som de água que estaria debaixo da pista de carro que o filme desloca.

Por conta da objetividade e simplicidade do dispositivo fílmico (que talvez possa ser compreendido como um filme estrutural), a atenção entre imagem contemporânea e arquivo textual representado na dimensão sonora conjugam uma dupla temporalidade: o parque materializado na imagem e o anseio sonoro do passado,  de construir esse espaço popular e gratuito, defendido por Lota. A defesa contra a privatização daquele espaço e a postura favorável à tombamentos de diversos espaços comunitários cariocas é contrastada pelo suas falas aristocratas e seu alinhamento à figura questionável de Carlos Lacerda. Dessa forma, o filme restitui e devolve ao bem público a personagem de Lota e algumas de suas intenções de forma similar ao parque: aberto, porém ainda restrito às pessoas que conseguem ter acesso a esse local/produção.

Autor

  • Lucas Honorato

    Graduado em Cinema de Animação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Mestrando em Comunicação e Cultura no PPGCOM da UFRJ. Orientado pela Prof. Dra. Liv Sovik. Pesquisa curadoria do Cinema Negro brasileiro, cinema de arquivo e estética da remixagem audiovisual. É curador freelancer, realizador audiovisual e pesquisador de cinema, comunicação, raça e etnicidade.

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