Intercorrências estilísticas de um ecossistema animado

Last Updated on: 3rd julho 2024, 01:42 pm

Monocromático em cinza, com variações tonais que pintam os volumes e texturas da cena urbana noturna, o quadro é preenchido por desenhos que figuram uma jovem, de 20 e poucos anos e longos cabelos escuros, prensada contra o chão da cidade por grandes rinocerontes humanoides vindos do espaço. Cercada e subjugada, ela se agarra ao único ponto amarelo em tela: um precioso fragmento de cerâmica que é a causa do conflito em questão. E então ela diz: “Minha bunda é um gorila”, o que convoca a trilha energética de Bizarros Peixes das Fossas Abissais (Marão, 2024), que se insinua sobre a cena enquanto os traços animados concretizam o absurdo – a bunda vira mesmo um gorila, Deus ex-machina que reverte a situação. 

O primeiro longa dirigido por Marão e animado por ele, Rosaria e Fernando Miller ao longo de 10 anos, funda-se na volúvel diversidade visual trabalhada em quadro. Abre com uma tela branca sobre a qual se vê uma sala delineada por traços pretos, simples e sem hachuras. O senhor no centro do ambiente balbucia confuso, culpa do esquecimento que o acomete – problema motivador da aventura que sua neta empreende pela Terra, acompanhada dos amigos. Quando agrupados, os cacos disputados revelam o mapa com as coordenadas para uma alga que tem o poder de restaurar a memória. A garota de início coabita o bioma  alvinegro com o avô. Destemida, cai na porrada com brutamontes rivais: na branquidão que é cenário, a protagonista enfrenta um homem que tem o dobro de seu tamanho durante uma cena rápida. Munido de um grande machado bigume, ele gira a arma sobre a oponente com força inscrita pela amplitude do gesto; antes que a lâmina alcance o alvo, a jovem desvia do ataque com agilidade típica de desenho animado. Cartunesco e elástico, o movimento das figuras é riscado em quadro com uma espécie de transparência artificial, expondo vestígios do mecanismo que os cria. Os corpos são impregnados das sequências de rabiscos acelerados que se alteram ligeiramente em posição para amalgamar os gestos.

Mas há momentos diametralmente opostos em termos visuais. Quando se desenha em tela o mercado que introduz a tartaruguinha ranzinza, ajudante obcecado por organização, cenário e personagens são preenchidos por cores diversas, com aparente densidade. Os muitos corredores com produtos meticulosamente estocados são repletos de minúcias e acabamentos cuidadosos. Luz e sombra são bem definidos de forma a insinuar a tridimensionalidade neste mundo 2D. Em Bizarros Peixes… a construção visual não se dá dentro de um binômio – tais estilos antagônicos são modulados cena a cena. A concretude, edificada pelo grau de detalhamento, e a sugestão da dimensão física, elaborada através das variações tonais, são recursos mais ou menos explorados de acordo com o desenvolvimento narrativo. O avô com alzheimer é regredido ao mundo de rabiscos monocromáticos; a tartaruga neurótica-obsessiva, frustrada com a desorganização do mundo, é imersa na vastidão de cores que salientam o que há de desalinho.  

O anti-binarismo, a gradação que percorre múltiplas variáveis, orienta o filme para além da visualidade. Se o poder mágico da protagonista é sua bunda, isso, porém, manifesta-se sem a usual sexualização de tal parte do corpo feminino. Mas também não há castração nesse desenho animado: como uma mulher real, a personagem tem curvas e pega sol de biquíni na areia da praia sem pudor. Seu outro companheiro, uma nariguda nuvem cumulonimbus com incontinência pluviométrica, diz “Gosto quando você senta” assim que a garota sobe no amigo para voar. As linhas de significação se misturam e se confundem, o filme está em constante estado de variação. Transmuta-se camaleonicamente com atenção primária às sutilezas – vide o gatinho desenhado em terceiro plano em uma das sequências, lambendo a pata da frente.

Esse gesto de sublinhar os detalhes, enriquecer cenário e ação com igual atenção laboral, estende-se até o abismo – literal: as fossas abissais anunciadas já no título. Durante a descida até o leito marinho, o ritmo do filme muda. Se no geral as cenas têm um compasso dinâmico característico da aventura, no caminho para o fundo do mar há um respiro movido pela curiosidade acerca das criaturas que cruzam a tela. Peixes, lulas, enguias e toda a sorte de seres abissais flutuam, multicoloridos e multiformes, sob um olhar que é ao mesmo tempo de fascinação e apreensão pelo desconhecido misterioso. E o filme lhe concede a atenção necessária, de forma que os animais figuram espaçadamente no quadro, passeando como se sendo exibidos, quase catalogados, em suas peculiaridades. Da temática de exploração submarina, os animadores fazem um longa que especula maneiras de variação visual orientadas pelo ecossistema próprio que ele elabora. 

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