É noite. Fria, muito provavelmente. Os personagens estão bem agasalhados, mas tremulam os lábios. Estamos no extremo Sul do país, na cidade de Rio Grande. O sotaque carregado nos dá pistas. De origem operária, relevo baixo e cimento envelhecido, o município demarca a periferia da periferia do Brasil. Homens na quebrada da quebrada do capitalismo — como bem notou meu parceiro e editor da Descompasso Rubens Fabrício Anzolin.
O desfecho de Cassino (Gianluca Cozza, 2024) se dá da seguinte forma: em primeira camada no plano, ao canto do quadro, a ofuscada luz de um celular nos dá a ver breves lampejos de dois corpos. Um flash os ilumina. Por um instante de segundo, mal conseguimos distinguir o que vemos. Não satisfeitos com sua primeira aparição, estes rastros de corpo repetem o procedimento: posam para a câmera segurando algumas garrafas de bebida alcoólica pela metade e, nos ombros, erguem um botijão de gás. Troféus de sua empreitada noturna. Em meio a escuridão que esconde seus rostos e suas ações marginais, ficamos com o gesto da repetição. Uma questão de postura. Um outro flash reenquadra estes mesmos sujeitos que jogam com suas aparições em meio à noite, que escolhem como portar-se diante do regime de imagens. Uma questão ficcional ou de auto-mise-en-scène? Não sabemos. O que temos são ladrões, figuras noturnas por excelência, que posam para um celular e, por que não, para o cinema?
Um “filme de assalto” que, sem sombra de dúvidas, é um dos mais radicais já feitos nos últimos anos de curtametragismo brasileiro. O filme é relativamente simples em sua proposta narrativa, trata-se de um paradigma já conhecido do gênero cinematográfico, o filme de crime: três homens reunidos em torno de uma única missão: entrar e sair de um espaço sem ser visto, sem deixar rastros, sem deixar pistas, levando consigo o que conseguirem carregar. E assim o filme faz. Pé ante pé, os personagens circulam pelas redondezas da casa e caminham sorrateiramente pelos telhados até chegarem onde eles acreditavam ser o pote de ouro.
Como em Madrugada (2022), filme anterior de Gianluca feito em parceria com Leonardo da Rosa, a noite se impõe não somente por escolha estilística ou autoral, mas como espaço único que abarca a existência dos corpos marginalizados. A escuridão representa a aparição de uma subjetividade que só pode existir nas sombras, objetos que emergem da margem, revelando-se ao mundo apenas enquanto os outros dormem. O que há de comum em ambos os curtas são as figuras que saem à noite, regidas pela função do cumprimento de um dever, a execução de uma tarefa que se dá a ver somente nas sombras. Diferentemente do recente Núbia (Bárbara Bello, 2025), em que um corpo vagueia sem destino determinado pela madrugada belo-horizontina, Madrugada e Cassino estão mais próximos de Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados (Aiano Bemfica, Camila Bastos, Cris Araújo, Pedro Maia de Brito, 2018), no qual as luzes da noite são reservadas às ações clandestinas. Nos dois casos, há um dever a ser cumprido: ambos os grupos são movidos por um senso de sobrevivência: em Conte…, a construção de uma ocupação; nos filmes de Cozza, o roubo como fonte de renda primária.
Em perspectiva, o modo como os sujeitos emergem das sombras é, portanto, a espinha dorsal do cinema de Gianluca. O jogo de opacidade operado pela montagem, enquanto os personagens caminham pelo Balneário Cassino, é a maior evidência disso. A demora do filme em revelar o rosto desses ladrõezinhos guia a função de seu cinema. Nos primeiros dez minutos, metade da duração da metragem, vemos corpos sendo engolidos pelas sombras, enquanto planejam um assalto e narram suas experiências parcialmente frustradas com as mulheres com quem se envolveram. Os relatos, relegados inicialmente ao fora de campo, nos dão uma sensação de incaptura daquilo que está discursivamente sendo dito. Essas figuras, portanto, aparecem majoritariamente enquanto espectro: rastros de subjetividade. Coisas que não se vêem. No plano inicial, a câmera mira o chão, focando a terra arranhada pelo mapa da região da Praia do Cassino, enquanto vemos apenas a projeção dos personagens — suas sombras. Reservados ao fora de campo, assim como suas imagens, eles conversam sobre o envolvimento que um deles teve com uma mulher em uma balada nas últimas semanas.
Após esse momento, temos finalmente a execução do crime. O assalto é filmado mais como a constatação de um fracasso do que a espetacularização do ato, em contraponto a outros filmes do gênero. Eles reviram a casa e procuram por algo de valor, mas não encontram nada além de algumas garrafas de vodka pela metade e um botijão de gás. A percepção de que tudo (a vida, o amor, o flerte) dá errado norteia não somente o assalto, como também a relação desses homens com as figuras femininas. Diante do fracasso, o filme entra em um compasso de espera, aguardando que algo surja da interação entre esses ladrões. Diante disso, Daniel e Tando se voltam para questionar o porquê de Soninho ter sumido do Cassino nos últimos meses. É nesse momento que o filme de crime cede espaço para um certo romantismo entre estes homens, para um filme que, a seu modo, se quer romântico. Numa postura quase straub-huilletiana, de rostos que falam em meio a um jogo rígido de câmera, Soninho relata que vendeu seu carro e mudou-se para São Paulo, pois tinha se apaixonado por uma mulher que conheceu no Instagram. A paixão, entretanto, não durou mais do que algumas semanas e o personagem viu-se obrigado à voltar para sua terra natal.
Em meio às zombarias de Daniel e Tando, o assalto e a representação das mulheres no filme surgem como figuras análogas, já que ambos materializam um fracasso parcial desses homens. Se, por um lado, eles não conseguem nada de valor no assalto e posam para a câmera ostentando objetos banais, o mesmo ocorre na forma como se referem às mulheres: ainda que tentem se vangloriar e projetar uma imagem de garanhões, o que efetivamente se materializa é a frustração de uma situação que lhes fugiu ao controle e deu completamente errado. Surge, portanto, um ponto crucial para o filme: a forma como tanto o assalto quanto a representação da mulher são filmados. Enquanto o assalto é dramatizado em opacidade — Straub-Huillet —, o modo como esses homens se referem aos seus afetos — tanto com as mulheres, quanto entre si — é igualmente posta de maneira nada dramática ou espetacularizada. Esta abordagem evita um enquadramento simplista de lógicas machistas e misóginas, rejeitando uma análise que se concentra apenas em uma camada superficial da dimensão discursiva do filme — leitura essa que tem sido apontada com certa recorrência na recepção da obra.
Se por um lado, o discurso desses homens pode ser dotado de uma carga de violência, o sotaque extremamente carregado do extremo Sul , de onde cineasta e atores são originários, cria uma barreira de inteligibilidade, não intencional mas que evidencia uma demarcação territorial da fala, ao espectador pouco acostumado com esse modo de falar (não à toa, em diversos momentos, precisei recorrer às legendas em inglês para entender parcialmente o que estava sendo dito). Desse modo, surgem outras questões que são centrais para o filme:
1) O filme apresenta essas subjetividades de maneira nada apaziguada. Não que elas sejam retratadas como mimese da realidade, mas a violência que constantemente cerca esses corpos marginais, por consequência, também irá se manifestar em suas relações afetivas não só com as mulheres, mas também entre outros homens — vale lembrar o quanto de troça, por vezes violenta, que Tando e Daniel fazem de Soninho quando ele fala de seus sentimentos. O que poderia ser, portanto, a maior derrocada do filme é justamente o achatamento dessas masculinidades em um molde mais palatável para um público de esquerda e relativamente “desconstruído”, ciente das problemáticas que envolvam a masculinidade. O aspecto violento dessa tentativa de apaziguamento reside precisamente na falta de perspectiva de classe que salta aos olhos em Cassino. Tanto o desejo do espectador em tornar essas masculinidades mais “positivas” e, consequentemente, menos objetificadas, quanto o desejo do filme insistência do filme em sublinhar explicitamente a sua rejeição a um discurso possivelmente misógino (algo que sua forma já faz com sutileza) são desejos violentos, quiçá mais, do que os próprios discursos proferidos pelos personagens.
2) De certo modo, esse desejo representa uma violência de classe. Ao se tentar substituir uma subjetividade masculina repleta de contradições por outra mais “positiva” (ou seja, mais palatável para um público de classe média), imputa-se uma concepção do que é “moralmente correto” como um valor inerente a essa classe, uma positivação de subjetividade, apagando as especificidades e os contextos da experiência original. Engana-se, contudo, quem pensa que o desejo seja tornar essa subjetividade marginal “moralmente correta”. Pelo contrário, o que interessa é compreender essa operação como uma manifestação de contradição que emerge da violência de classe que cerca esses corpos. O que implico aqui é que um binarismo entre “representação positiva” e “representação negativa”, entre representação “certa” e “errada” da masculinidade não cabe em Cassino – e possivelmente em muitas outras obras. Desejar que o filme se dobre ao o que seria, ou poderia ser, uma performance de masculinidade “correta” ou “incorreta” é não somente reduzir o filme (e o cinema) à um caráter puramente pedagógico, como também é subestimar sua capacidade de interpretação daquilo que não ocupa somente a primeira camada — sendo esta discursiva — do filme.
A masculinidade é aqui apresentada em sua complexidade contraditória: se por um lado temos homens que objetificam as mulheres, por outro, revela a fragilidade deles diante da figura feminina. Os versos de Jorge Luís Borges, “Uma mulher dói por todo o meu corpo”, ressoam na relação entre esses homens e a forma que o feminino é apresentado pelo filme. Não por acaso Soninho vende tudo para buscar o amor em São Paulo. Seu deslocamento parece inadequado, uma vez que ele vai ao centro do país e sente falta da sua quebrada. É quase como se, de modo análogo ao título, que sugere não apenas a localidade geográfica do filme, mas também uma aposta, um risco inerente ao ato de jogar, o personagem se tornasse um apostador de um novo modo de existir. O que acontece, no entanto, é que o desejo de ser amado que ele tanto persegue já está materializado em outros homens; concretiza-se no sincero companheirismo que Tando e Daniel lhe oferecem — seus parceiros de crime, quebrada e classe, seus iguais.
Diante disso, é seguro dizer que a ausência feminina enquanto imagem é uma operação primordial para o funcionamento de Cassino. Embora esteja completamente ausente em imagem e relegada ao discurso dos ladrões, a mulher se faz presente pela sua própria ausência. Ela habita o imaginário desses homens e, ao mesmo tempo, a mente do espectador, que sente essa ausência marcada por uma série de distância estabelecidas pelo filme. Sua falta na tela torna-a, paradoxalmente, indispensável à carne fílmica. A imaginação do não-visto, técnica explorada na primeira metade do filme, estende-se assim à figura feminina, que passa a ocupar um lugar puramente especulativo tanto para os personagens quanto para o espectador. Na ausência, sua presença é fundamental. A mulher que não existe, que partiu o coração de Soninho, é o verdadeiro fantasma de Cassino.

