Uma imagem é recorrente em Cloud (Kiyoshi Kurosawa, 2025): Ryosuke, o protagonista, sentado em uma cadeira, encarando seu computador, enquanto espera alguma mudança naquilo que vê em tela. Pacientemente, e sem nenhuma intervenção no fluxo das ações, quase como um autômato, o personagem aguarda novas informações vindas do monitor. Enquanto isso acontece, os produtos colocados à venda por Ryosuke vão esgotando pouco à pouco. Ainda assim, diante da “vitória”, seu rosto pouco muda; permanece calmo, concentrado e determinado em executar seu plano.
O filme de Kurosawa trabalhará a distância entre esse plano e o destino final de Ryosuke, um rapaz que, após perceber o sucesso das suas ações como revendedor autônomo, passa a se dedicar full-time a esse trabalho, pedindo demissão da fábrica onde trabalhava. As coisas dão certo para Ryosuke graças a uma estratégia um tanto quanto questionável: ele compra grandes quantidades de produtos (aparelhos terapêuticos, bolsas e action figures), alguns falsificados e outros de origem desconhecida, por um preço abaixo do custo de produção, para depois revendê-los de modo superfaturado. Faz o mesmo esgotando estoques intencionalmente, para depois fazer com que a demanda dos produtos esteja altíssima, lucrando com isto. Contudo, a situação começa a mudar a partir do momento em que os compradores destes subprodutos descobrem a localização de Ryosuke e decidem ir atrás dele. A partir daí, o filme se estrutura em um conhecido jogo de caça, captura e tortura, sedimentado na ideia da corrida de rato contra o sistema.
Mas há, porém, uma fragilidade no embate entre o sistema e seu desertor. Os oponentes — compradores desesperados e frustrados, pouco habilidosos com o material bélico — são facilmente derrotados por Sano, o assistente de Ryosuke, que os persegue até a morte. A câmera, por sua vez, não se esquiva de registrar frontalmente os assassinatos, de modo a dar a ver não apenas a derrota física, mas todo o impulso fracassado daqueles homens, peças rapidamente descartáveis apesar dos seus desejos.
De outro modo, a fragilidade da proteção do mundo digital é atravessada pela determinação individualista do personagem que persegue suas vendas na medida em que vê o seu lucro aumentar exponencialmente. O individualismo está presente não somente na prática dos sujeitos, bem como na maneira em que os ambientes filmados por Kurosawa. A câmera pouco transita pelas residências do protagonista, se concentrando em acompanhá-lo em frente ao computador — primeiro um modesto apartamento e, seguido de suas sucessivas trapaças, uma luxuosa casa no interior. Os enquadramentos destacam sempre Ryosuke e seu entorno, com planos fixos que na profundidade dão a ver os objetos ao redor, o concreto das paredes, o vazio das ruas e as interações secas de alguns diálogos. Cria-se uma espécie de thriller que gira em torno dos mistérios e das intenções desse personagem que, enquanto compreende a sua atividade e a sua ganância, reforça a sua ambiguidade moral pelas relações com os personagens do seu convívio, desde sua namorada pouco afetuosa, Akiko, até seu fiel assistente, Sano, tratado friamente por Ryosuke.
Nas cenas urbanas, chama a atenção em como esse distanciamento amplifica o estranhamento na relação dos personagens. Pouco se vê os rostos dos poucos pedestres que atravessam o quadro. Um exemplo disso é a cena em que Ryosuke, conversando com um colega no ponto de ônibus, encontra Akiko, e os três parecem ser as únicas pessoas de todo aquele ambiente. Mesmo quando se espera o movimento de pessoas, o filme nos entrega somente o vazio urbano, como o sujeito que parece vigiar o casal no ônibus ou o ex-chefe de Ryosuke que ronda sua casa. A presença do outro em Cloud — como em geral na obra de Kurosawa — é sempre um vulto. Sintoma de paranóia e perseguição que assola tanto protagonista e como dita o caráter de um mundo digital frágil e hipervigilante.
O individualismo e o afastamento, enfim, resultam em conforto, o que é ampliado pela segurança do anonimato da internet, e, nesse caso, do nome de usuário usado para as vendas. Tudo isso é posto à prova quando os “antagonistas” de Ryosuke descobrem facilmente a sua identidade. Estes, por sua vez, se reúnem com um objetivo comum, mas carregam intenções tão individualistas quanto as de Ryosuke: alívio do estresse causado pelas compras, frustração e inveja. São todos, cada um à sua maneira, vítimas de um sistema que espera que se vá até as últimas consequências para o ganho máximo financeiro.
Tais questões são dinamitadas no confronto final. A cena acontece em uma fábrica abandonada, sem energia, com grandes equipamentos que servem como barricada. Se essa ambientação representa um isolamento do mundo, é também o momento que o personagem deve encará-lo. Apesar disso, Ryosuke continua indiferente e sem entender as consequências das suas ações quando confrontado por elas. A sua obsessão pela grana, pela venda e a sua indiferença não só quanto aos outros, o tornam cego e refém daquilo que começou, sem mais alternativas em meio ao caos. Por muitas vezes, essa indiferença quanto ao mundo ao seu redor soa tragicômica: o inesperado das ações imbricado com destino cruel imposto pelo sistema. Isso se concretiza no momento em que ele insiste em se importar com o destino das vendas quando a sua casa é destruída e ele escapa de ser assassinado. Tragédia e ironia apontam como único destino possível para o personagem, pois está encurralado pelas imposições e escolhas de um estado de mundo capital absurdo e alucinante. Basta pensarmos na lógica do Tigrinho, trazendo para o lado de cá.
Há uma espécie de ciclo fatal do mundo em Cloud, centrado em um personagem que ora é a vítima, ora é o agente causador das situações que se voltam contra ele. Este sujeito não aprende uma lição, nem sequer deixa de fazer o que faz. Se até certo momento, havia tranquilidade e conforto nas ações, o que o cineasta faz é arrastar o personagem para essa comunidade raivosa e confrontá-lo definitivamente. Como quem diz: é assim que se entra no inferno.