Last Updated on: 31st janeiro 2024, 05:15 pm
Atrás de arbustos, em uma praia aparentemente deserta, uma câmera com movimento instável está à espreita de algo ou alguém. No fundo da imagem, o azul escuro do céu anuncia a chuva iminente, se misturando aos tons do azul do mar e ocupando um espaço mínimo do plano. A imagem revela a onda que irrompe a areia e os ruídos de uma ventania nos levam a compreender que o mar está furioso. Do fora de campo, certa voz divaga sozinha: “você não fugiu?”. Gritos ecoam em diferentes pontos do litoral. Somos incapazes de localizar quem grita, mas, de alguma maneira, a câmera trêmula parece responder a esses estímulos. Quando duas pessoas entram em cena, conversando em idiomas diferentes, a câmera se desprende de sua posição de observador e às segue por um caminho sinuoso através de uma pequena floresta. Abaixo da copa das árvores, parece ser noite. A falta de luz dificulta a visão. Respirações ofegantes se misturam a um diálogo inconcluso sobre um grupo de pessoas que se perderam. O casal, que antes conversava, guia-se pela luz do céu e, ao final da trilha, acessa outro ponto da praia, onde alguns corpos caminham sem direção. Ao abandonar o casal e seguir uma dessas outras presenças, a câmera se desestabiliza e muda, quase que instantaneamente, de foco, filmando o contra plano do oceano. A luz baixa gradativamente… a noite está quase chegando. Um movimento na imagem revela um corpo estirado no chão.
A cena inicial de “El auge del humano 3” (Eduardo “Teddy” Williams, 2023) introduz uma narrativa inconclusa através de um olhar que deambula pelos espaços, com uma posição que oscila entre a identificação e o estranhamento. Através de uma câmera em perspectiva, constantemente instável, o filme apresenta a si mesmo como um processo criado com o intuito de extrair o máximo das imagens e levá-las a uma saturação em sua própria materialidade. Ao passo em que as produz, também joga com os limites entre o dentro e o fora de campo e com a própria ideia de mise-en-scène. E, não obstante, aposta no ruído como estratégia para incorporar as tensões e vibrações das imagens digitais ao procedimento narrativo. Com cenas gravadas no Sri Lanka, Perú e Taiwán, o longa-metragem traça um mapa sensorial e inacabado de um grupo de jovens amigos que deixam suas casas para percorrer um caminho que ainda está por ser descoberto. Nos diferentes territórios, os diálogos – que quase sempre refletem uma insatisfação política ou uma dimensão especulativa sobre os sonhos e as comunidades – se repetem. Sons de cigarras, do motor de barcos pequenos cortando o fluxo da água em rios sinuosos, do vento forte, da garoa e dos mosquitos, reiteram uma atmosfera tropical que atravessa todo o filme. A sensação de um verão longuíssimo, no qual não há muito a fazer além de cantar, tirar uma soneca com os amigos pela tarde, sair para beber, nadar, dançar, fazer uma caminhada e, principalmente, reivindicar a extinção dos bilionários.
Em meio a representação desses momentos cotidianos, há algo no modo como se filma essas imagens que reitera a tensão presente na primeira sequência do longa. A câmera em 360° leva a uma sensação de estarmos vendo mais do que deveria ser visto e reconfigura uma convenção relacionada à importância de determinados elementos dentro de um plano cinematográfico, tendo em vista que nos estudos fílmicos, a delimitação de um plano usa como referência a figura humana. Em El auge del humano 3, o corpo é nada mais que outra textura imbricada a um jogo de explosões de movimento, de profundidade e de tempo. Imagens que funcionam como ondas acústicas (fruto de uma vibração de materiais e dispositivos) que podem ser sentidas e percebidas, mas não capturadas totalmente pela visão humana. A abordagem virtual configura uma dupla ilusão: ao mesmo tempo em que nos induz a entender que temos acesso a tudo, há algo entre esse jogo de relações simultâneas que nos escapa.
Teddy Williams nos propõe então, um outro olhar; escondida na mata, a câmera, estática, enquadra um rio. Nessa água há uma pequena canoa com uma mochila vermelha. O som das cigarras se intensifica. Também ouvimos o som singelo da água. Depois de um tempo, quando os nossos olhos se acostumam com a mata, algum movimento nas árvores sacode as folhas. De repente, surge um macaco que, curioso, explora o território diante dele e a mochila. O olhar do animal se choca com o olhar da câmera – também estrangeira, não-humana – e perturba algo na imagem. O dispositivo de captura começa a girar lentamente revelando o que estava no fora de campo. Com um movimento panorâmico, demonstra o restante da floresta, mas o macaco já não está mais ali. Ele e a câmera se fundiram em um só. O movimento se intensifica. Escutamos todos os animais da floresta ao mesmo tempo, sobrepostos. A movimentação ritmada da câmera, em círculo, induz a uma sobrecarga: a imagem colapsa em si mesma para se transformar, durante alguns segundos, em detritos digitais através de um efeito estroboscópico. Assim, corporiza uma espécie de infraestrutura rítmica que molda e dá forma aos fenômenos visuais. Essa suspensão nos coloca à deriva e, diante do profundo desconcerto que acompanha a realização de que entender que não se pode atribuir um significante e significado a essa imagem aberrante, partimos novamente do zero, recomeçamos a ponto de reprogramar o nosso olhar.
Do vazio que a entrega absoluta proporciona, a imaginação coletiva nasce como um mapa que nos ajuda a navegar por esse universo outro. A ideia de comunidade como matéria da mais recente tecnologia. Os amigos, todos reunidos pela primeira vez, desbravam uma trilha na montanha. A câmera serpenteante e omnidirecional os acompanha e o campo de visão construído por esse registro configura um tipo de movimento em esfera. Nesse novo mundo imaginado, corpos estranhos brotam no céu como nuvens, um assombro visual sem precedentes. A imagem parece rejeitar a si mesma e não existe outra saída, exceto a que leva ao final do longa: uma pessoa do grupo faz uma decisão posicionando as duas mãos na câmera – o dispositivo que se comporta como um animal em sofrimento profundo – e lhe oferece justiça. A câmera é jogada e rola desesperadamente por um penhasco em um loop extraordinário, até parar, outra vez, atrás de um par de arbustos, esquecida para sempre. Acredito que, no cinema, não exista nada mais contemporâneo que isso: rejeitar as imagens para voltar às imagens.