Last Updated on: 1st agosto 2024, 06:12 pm
Doçura de luz / Amargo e sombra escura / Procuro em vão banhar-me em ti / E poder decifrar teu coração
Beto Guedes — Luz e mistério
Parte I – Prélude (Prelúdio)
No princípio, tudo era escuridão. Do fundo preto que domina o cenário, ressoa uma crescente e reverberante percussão. Acelerada, sugere desembocar em um clímax, mas o que se sucede é uma aparente calmaria. O batuque manual, ansioso, dá lugar a difusos sons de uma floresta e suas criaturas, e do completo breu emergem dois pequenos pontos de luz amarelos. Um indício de vida se faz presente no véu imperativo, e na tentativa de algum reconhecimento a partir desse primeiro contato, surge uma nova inflexão: trafega-se da enigmática subexposição, que mantinha aquele mundo nas sombras e que se apresentava como diretriz, até uma escaldante superexposição que queima o que está em quadro, revelando pelo caminho a existência de um bioma campestre, composto por ervas, ramos e rosas.
A vegetação rasteira é destacada por uma cintilante luz de contorno, que lhe confere um aspecto extraordinário, distante de qualquer banalidade. Mas o que poderia ser observado sem pressa e contemplado enquanto elemento de conforto ou especulação idílica, é logo abreviado por esses que se apresentam como os maiores interesses de Darkness, Darkness, Burning Bright (Gaelle Rouard, 2023): a variação fotométrica percorrida de um extremo ao outro, expondo tanto os limites de absorção e reflexão luminosa dos seres filmados, quanto a capacidade fotossensível do material fílmico em 16mm. A mutação interna constante da imagem, imposta ao espectador sem aviso prévio, inverte a colorimetria do ambiente e reconfigura a exposição fotográfica, criando uma situação de renovação significante. Um arco-íris, por exemplo, pode aparentar ser mais uma danação divina do que uma benção, sem nunca perder seu encanto e imponência. Tais movimentos instauram um mundo inapreensível e cheio de dúvidas, capaz de ser escuro, apesar de brilhante; ou então belo, mesmo que perigoso, como algum território perdido entre os Campos Elíseos e o Vale das Sombras, onde não se consegue transitar seguramente.
Ao decorrer da primeira parte de Darkness, Darkness, Burning Bright, chamada de Prélude [Prelúdio], mais componentes aparecem e novas criações se formam. Agora, o reino vegetal também é compartilhado por uma fauna torpe e fantasmagórica. Céus vampirescos e arbustos balançando afirmam o tom soturno e espectral. A trilha instrumental retorna, dessa vez mais densa e lenta, mas nem por isso menos agoniante. Nessa nova investida sonora, o vento uiva e os sinos dobram, indicando a mescla dos antes apartados ruídos de origem natural dos barulhos de constructos humanos, vide os tambores que precederam a audição silvestre.
É justamente a partir da ideia de mescla dos diferentes que um dos dispositivos mais interessantes do filme é desenvolvido. Grande parte dos retratos do ecossistema são ordenados por um enquadramento conjunto, que evidencia em plano aberto os seres terrestres (plantas e animais) e os elementos celestes (estrelas, astros e cometas), em contiguidade orgânica. Com o tempo, no entanto, uma penumbra horizontal torna-se recorrente em tais imagens, a ponto de separar o quadro entre blocos superior e inferior. Ao desprender a continuação entre o solo e o terreno espacial, a cisão sombreada possibilita redefinir o horizonte das paisagens, e se torna um estímulo à recomposição imagética por meio de colagem. É através de tal exercício de reconstrução do espaço que misturas de registros acontecem, com fotografias fixas e vídeos dividindo o plano, mesmo que em polos diferentes.
Mais notadamente, o novo mecanismo de organização, capaz de fazer noite e dia coabitarem ao mesmo tempo, viabiliza uma mescla cósmica. Essa composição em torno do interstício, ao romper com as leis naturais de causa e efeito entre céu e terra, indica uma operação de resultado impuro, fruto direto do remanejo das ordens divinas. Experimenta-se a possibilidade inconsequente de brincar de Deus, reimaginando ecossistemas apesar de suas funcionalidades prévias, mesmo que um temor mágico se instaure em cena: daí em diante, com as matizes e regras cosmológicas esgarçadas, o quadro se mancha pictórica e cromaticamente por cenários distintos, podendo coexistir animais e vegetais iluminados pela luz do sol sob o céu do fim do mundo. O distanciamento de uma ordenação lógica “natural”, ao passo que mais embaralha as origens das paisagens do que indica pistas de rastreamento, também mais encanta do que repele. Há nessas construções deformadas e perdidas no espaço-tempo um magnetismo visual notável.
Nosso lugar dentro desse jogo fragmentado também possui algo de desorientador. Em um primeiro momento, a câmera enquadra de perto e à altura dos olhos um rebanho de vacas. Uma desertora vem até a câmera, nos cheira, nos olha e, ainda afetados pela surpresa originada em tela como recurso do filme, nos precavemos até de uma possível cabeçada do animal, que nos aceita enquanto mais um do grupo. Mais adiante, vemos o gado pastando pelo gramado de uma posição tão distante que se assemelha à mirada de um observador no topo de uma torre alta, encastelado e exterior àquele universo. Tudo isso para que, minutos depois, retornemos ao rebanho e vejamos por detrás das vacas um espetáculo estelar no céu, como mais um participante aderido por aquele sistema.
Apesar de um delongamento em tela maior para com as vacas, mais alguns quadrúpedes vivem por lá. Ovelhas, cachorros e um cavalo são representados de forma especialmente elementar. Suas aparências são reveladas por uma brilhante luz de contorno, que mais evidencia as delimitações corporais desses animais do que suas propriedades fisionômicas ou especificidades comportamentais. É desse delineamento superficial que características como estatura e formato são tomadas como objeto minimamente capaz de diferenciar as espécies em questão. A claridade pulsante cria naqueles corpos uma massa física de mistério, alimentada pela escuridão do contra-luz ou pela iluminação direta além da conta. Essa expansão ardente, dotada de um poder imagético de atração, é indissociável de uma violência desconcertante, que recorta e desloca aqueles corpos de sua originalidade biológica.
É também por uma circunstância fundamental que unidades naturais como o vento, a noite e o fogo são evocadas. Esses dois primeiros já figuram notadamente como imagem e/ou som, vide as folhas esvoaçantes das árvores e a própria ambientação crepuscular, respectivamente. A queima indicada no título do longa-metragem, o tal burning bright, no entanto, não tem representação figurativa direta, podendo ser sugerida pela luminescência incendiária que afeta certas figuras e, principalmente, por compartilhar com o filme uma condição de perigo, encanto e imprevisibilidade atrelada à sua existência: trata-se da contaminação flamejante, cuja trajetória percorrida é tão incalculável quanto devastadora à integridade natural dos ambientes e dos seres vivos.
Parte II: Oraison
Ao segundo ato, mesmo que as principais implicações já propostas permaneçam com fôlego, novas repartições e diluições dão as caras. A própria orientação prévia da fratura horizontal do plano, suturada por uma colagem à base de penumbra que sincronizava duas imagens díspares, se rarefaz. Agora, o quadro é poluído por diversos pedaços de imagem, sem ordenação vetorial identificável. A sobreposição também se inclui no processo de composição do que é visto, deixando rastros submersos de pigmentos e formas num abismo de espectros.
Se na maior parte do primeiro ato os fenômenos siderais que aconteciam sobre o horizonte representavam a parcela menos inteligível da cena, já que os elementos de ordem terrestre eram de possível identificação mesmo que distorcidos, é no capítulo Oraison que a observação astrológica é de certa forma transfigurada. O que antes ocorria em terreno celeste é elevado a níveis abstratos: formas volúveis com movimento plasmático, que têm ou não o céu como espaço de atuação, são projetadas sem escala definida, e se aproximam visualmente tanto de um aprofundamento microscópico em uma síntese celular, quanto de um hiperfoco telescópico que fita uma constelação. A semelhança, no entanto, nunca progride para algo mais assertivo, e a incógnita que se avizinha do material também faz companhia ao inominável.
O encadeamento de metamorfoses cada vez menos figurativas torna-se parte de uma repetição estrutural de desmanche, e o silêncio que domina momentos da segunda parte é um convite à entrega desassistida. Entre aparências e signos, borram-se as limitações únicas e essenciais e prevalece a infecção luminosa, catalisadora de uma bagunça polissêmica. O ritmo parece ser outro, mas nunca estanque. O passo, mesmo que firme, não se banca em terreno noturno. O prolongamento despreocupado segue para uma urgência incompreendida, e na vastidão daquele universo irrompe um grito feminino, que faz barulho sem formar palavra. O raro vestígio de presença humana se repete, mas ainda refém de uma baixa fidelidade associativa. Seria o chamado um pedido de ajuda? Talvez uma prece aos céus? Oraison significa ‘oração’ em francês, mas também é o nome de uma comuna rural no sul da França, repleta de campos e bosques.
Pelo fim do filme, o mantra de um clarinete ganha corpo, e o que já era uma jornada visual à deriva em terras movediças deságua em hipnose sonora. À essa altura, a alquimia baseada em mistura e dissolução dos sentidos faz com que o limiar que separa um disforme clamor espiritual de uma delimitada região na Europa seja o menor possível. As partículas místicas da cena final, que se espalham para dentro de uma massa branca estendida, também são estrelas que invadem o ventre do gado abatido. Enquanto o fogo da noite queimar, não se consegue pensar na morte da bezerra. Voltamos à escuridão.