Coração esmagado

Last Updated on: 8th março 2024, 03:16 pm

De um jeito ou de outro, os filmes de Michael Mann sempre lidaram com uma ideia de trabalho, de dever a ser cumprido, de obrigação. Do mais alto ao mais baixo escalão, boa parte de seus personagens estão impugnados por uma espécie de chaga moral a executar uma tarefa específica, uma missão. São sujeitos pré-definidos, podem até mudar diante das circunstâncias, podem exitar frente aos objetivos, mas possuem como matéria constituinte de sua personalidade uma espécie de pacto com aquilo que lhes é destinado. Estão não somente fadados ao trabalho, mas também às inúmeras consequências que ele cause. São espécies de operários, mais ou menos luxuosos, mais ou menos galanteadores, mais ou menos sortudos, mas ainda assim operários. Homens com uma causa.

Podemos falar dos heróis da força policial, dos detetives disfarçados, do taxista ordinário que salva o dia ou até mesmo de um dos mais famosos pugilistas do século XX. O mesmo vale para os bandidos: James Caan em Profissão: Ladrão, Robert de Niro em Fogo Contra Fogo, Johnny Depp em Inimigos Públicos — estão todos a trabalho. Independente da circunstância ou do local em que os filmes se passam, a insígnia que prescreve esses personagens é uma só: são sujeitos amaldiçoados pela ideia de dever, dever esse que suplanta o sono (boa parte dos filmes de Mann se passa à noite), suplanta o amor (geralmente o obstáculo sentimental desses homens), suplanta a cidade  (representação da chaga capitalista que atravessa seu cinema, de Miami a Tóquio, passando por Los Angeles e pelo Meio-Oeste da época da Lei Seca).

Talvez isso passe despercebido, mas Michael Mann sempre foi um cineasta que de algum modo lidou com o curso da História, com o instinto voraz do desenvolvimento que subscreve grande parte dos contextos em que seus personagens estão inseridos. A urgência que esses homens possuem (mafiosos, policiais, empresários e foras da lei) é sempre de seguir em frente, um cinema em movimento. Com Ferrari não é muito diferente.

O ano é 1957 e nosso protagonista acabara de perder o filho mais novo. Somado a isso, o casamento com Laura Ferrari, co-proprietária da empresa, está à beira do abismo. Como se não bastasse, a falência da escuderia bate à porta, e uma amante com filho bastardo pede por um futuro. A solução para esses problemas? A mais lógica de todas: o trabalho, o cumprimento do dever. Contratar um novo astro capaz de vencer a famosa corrida Mille Miglia é a única coisa que pode trazer um respiro de paz aos ombros cansados de Enzo Ferrari. 

O que acontece, no entanto, é que, dos protagonistas recentes do cineasta, Enzo é o mais obstinado de todos; um sujeito que, de tão devorado sentimentalmente pelo luto familiar e pela gana de vencer, torna-se alheio a tudo, inclusive a coisa que, mais cedo ou mais tarde, sempre fez os personagens de Mann derraparem, o amor. Isso porque Enzo Ferrari, no sentido mais literal da palavra, é um legítimo brucutu. Sua constituição é de uma opacidade imponente. A voz é grave como a de um touro, o corpo enorme, quase colossal, é sorvido por luxuosos ternos cinzas, formando uma espécie de armadura que protege não somente seus sentimentos, como também serve para que enfie o rosto nas horas mais difíceis. Estamos diante não mais de um homem suscetível às paixões e intempéries da vida, mas sim de um homem que, de tão rígido (e ao mesmo tempo tão fundamentalmente simples — sua paixão são apenas os carros), faz com que tudo e todos ao seu redor adquiram tal característica. Ferrari não é sobre a “História Oficial”, sobre reconstituir um tempo-espaço que nos apresente uma trajetória de vida. Ferrari é sobre trabalho.

Por isso não espanta que, dos últimos filmes de Michael Mann, esse seja o mais seco de todos, aquele que possui os cortes mais bruscos e as cenas menos delongadas. É como se, de algum modo, a forma do filme incorporasse em si uma espécie de névoa moral que sobrevoa este sujeito enlutado, destinado ao pragmatismo do ofício. O sexo, por exemplo, é voraz e mecânico; a visita à amante é com tempo contado; a missa na igreja é mais um compromisso profissional que espiritual. Nos momentos difíceis de seu arco narrativo, quando sua redoma de sentimentos parece querer ruir, o empresário vai ao mecânico. Por quê? Porque os sentimentos para ele são como uma engrenagem, se elas não estão funcionando, é preciso que um especialista — talvez os verdadeiros “operários” que apareçam no filme todo — as conserte.

No entanto, diante de um dilema que é tão aparentemente rasteiro (e nem por isso menos complexo), Michael Mann constrói aquele que é o filme mais gráfico de sua carreira, renegando o fluxo anterior de imagens de sua longa e bela fase azul para simples e unicamente filmar os corpos e objetos com a materialidade que lhes constituí. Importam mais as marcas faciais, os detalhes da pista, a massa bruta dos rostos e dos carros do que uma ideia de sentimentalidade que constituiu a atmosfera de suas obras. Vejamos como, pela primeira vez em algum bom tempo, o personagem principal não é representado como um galã, mas como uma espécie de ogro (o nariz acavalado, o rosto cerrado, os olhos sempre tampados pelos óculos); a musa de Penélope Cruz, que atormenta não seus sentimentos, mas sim seus negócios, não é uma presença afável, mas uma memória do luto — filmada sempre no terço baixo do quadro, ao redor de umprogenitor fúnebre halo preto. É como se, aquilo que diz respeito ao que é propriamente humano, que pulsa tal humano, importasse menos (e aqui, importa muito menos) que a aceleração dos automóveis. O “to do” vale mais que o “to be”. É preciso avançar.

A própria ideia de morte que perpassa o filme todo, por exemplo, é tratada com um certo grau de imediatismo. Nós que somos pilotos sabemos que podemos morrer, diz alguém a certa altura do filme. E isso basta unicamente, pois esses sujeitos estão mesmo a serviço de um sentido maior, que é o seu dever moral, quando não reprimido, de cumprir com a tarefa que lhes fora designada. Quando, ao fim do filme, um de seus pilotos morre, resultando em uma das cenas mais espantosamente cruéis que o cinema americano sorveu nos últimos bons anos (só me recordo de algo parecido se pensar na cena da menininha do sorvete em Assalto ao 13° Perímetro), Enzo Ferrari está mais preocupado com os pneus do carro do que com o corpo do homem falecido. Afinal de contas, a tal da “História” nos obriga a seguir em frente. O serviço, mesmo que deixe para trás alguns homens, precisa ser finalizado.

Essa é a síntese que balanceia Ferrari, a pulsão entre o trabalho (o dever) e a morte que alimenta o seu cumprimento. Por isso mesmo é que não surpreende Mann, que acelerou tantas cenas, se delongar sob o sangue das crianças mortas, estilhaçadas no chão, muito mais do que sobre o rosto da viúva. É por ser um cineasta mais preocupado com aquilo que aparece na imagem, aquilo que elas abstraem de símbolo (a chaga capitalista e seu rastro de sangue, gráfico e material, cru e, portanto, objetivo), do que propriamente com a perfumaria industrial hollywoodiana que vem à reboque de toda e qualquer biopic feita hoje em dia. Se estamos diante de um filme que fala o tempo todo em progresso, inclusive com o fantasma de Henry Ford a sobrevoar pela trama como nuvem escura, indo de boca em boca sem nunca aparecer, é necessário que seu exorcismo venha do modo mais brutal possível — pois, enfim, é isso que o “progresso” deixa para trás, uma tonelada de dólares, a estabilização de uma marca, e muito, muito sangue.

Ferrari começa com Enzo saindo da casa da amante, preocupado em não fazer barulho, e termina com seu personagem no cemitério, revisitando as dores que são oriundas de seu próprio ofício (e é importante perceber que no filme até mesmo os filhos são tratados assim, pois o casamento não funciona uma vez que não se possa deixar um progenitor, ou seja, um legado). Justamente por Mann compreender que o cemitério é o único caminho possível para quem segue à risca esse tipo de projeto desenvolvimentista, essa espécie de danação a qual o serviço nos obriga. Se Ferrari, ao contrário de alguns outros filmes de seu cineasta, não projeta o coração em primeiro plano, espalhando suas dores e prazeres por cada espaço do quadro, por sua atmosfera indelével, é porque provavelmente ele deve se encontrar esmagado, perdido dentro das engrenagens quentes do motor de um carro. Mas nem por isso é um filme menor, e nem por isso é menos encantador. Talvez seja mesmo a síntese de um criador que condensou seus principais temas (amor, morte, luto, dever, avanço do tempo) sob a cruz de um sujeito irrefreável, impossível de parar. É mais um filme de um grande cineasta. Gostemos ou não.

Autor

  • Rubens Fabricio Anzolin

    Rubens Fabricio Anzolin é curador assistente da Mostra de Cinema de Tiradentes, do CineBH e da Mostra de Cinema de Ouro Preto. Bacharel em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS). Possui textos publicados na Revista Multiplot!, Revista Rocinante, Zagaia em Revista, Portal da Cinemateca do MAM (RJ), entre outros. Programou sessões para festivais como Cine Esquema Novo e SemanaSemana. É produtor do Levante – Festival de Curtas-Metragens de Pelotas. Mantém o blog materiaprimacinema.com.

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