cinema, artigo 157: uma reflexão sobre “Filme dos Outros”

Frame do "Filme dos Outros" (2014), capturado para a crítica cinema, artigo 157: uma reflexão sobre “Filme dos Outros”.

Last Updated on: 21st agosto 2023, 12:04 pm

Através de um exercício de apropriação dos protocolos formais e dos dispositivos de criação que dão suporte para que se constitua uma imagem, Filme dos Outros (Lincoln Péricles, 2014) se fundamenta na tradição histórica de reapropriação de arquivos, como método narrativo no cinema, para criar um jogo de indagação sobre as questões que perpassam as ideias de roubo, propriedade, sampleamento e dispositivo. Assumindo a postura de mediador do olhar do outro, Lincoln Péricles engendra um modo de apresentação de um banco de dados de imagens encontradas em cartões de memória roubados em bairros nobres de São Paulo entre 2013 e 2015. O método é simples: um intertítulo descreve o dispositivo roubado onde as imagens foram encontradas (a marca da câmera ou do celular), o bairro e o ano. Em seguida, um plano é revelado ao espectador. 

A primeira cena do curta-metragem é uma câmera na mão com movimento instável que acompanha um grupo de pessoas carregando um corpo ferido em uma maca. Algumas palavras proferidas em árabe nos dão condições para imaginar o território onde acontece o conflito. Depois, um letreiro informativo indica a premissa do filme e dá a seguinte orientação: “se você for dono de alguma dessas imagens, entre em contato no email astuciafilmes@gmail.com”. Essa postura ambígua, com relação às imagens amadoras encontradas nos cartões roubados e a imagem sem censura do corpo sendo carregado no Oriente Médio parecem, à primeira vista, estarem dissociadas, mas partem de um mesmo gesto; ao passo que Lincoln se apropria narrativamente das imagens, também as devolve à esfera pública. Qualquer um possui o direito de reivindicá-las para si. Essas imagens e operações, portanto, pertencem a um campo de disputa que questiona sobretudo a ideia de propriedade. Se as imagens de alguns corpos são produzidas sem precedentes e veiculadas na grande mídia sem autorização prévia, Lincoln transfere essa mesma prática vigilante para as imagens produzidas pela classe média paulistana. Ninguém está a salvo da exposição. Reforçando, assim como em Filme de Aborto (Lincoln Péricles, 2016), a tese de que “toda propriedade é um roubo”.

As cenas expostas variam desde momentos de lazer das famílias até instantes de suspensão, onde a reflexão e o ponto de tensão entre quem filma e o que se filma se torna mais evidente. No metrô, uma pessoa fica com o celular à espreita filmando um grupo de jovens negros que estão se gravando enquanto cantam uma música do Mc Daleste. Embora a câmera estática não seja percebida por aquelas pessoas naquele momento, Lincoln faz questão de devolver a prática. Expõe quem filma e induz as suas motivações pela justaposição dos arquivos na montagem. A mesma classe média que se diverte assistindo jogos de futebol, shows, andando de buggy em suas casas de veraneio e caminhando no parque, também encontra diversão no exercício do poder através da imagem. Seja filmando as pessoas da periferia sem autorização ou se filmando ao repreender e dar ordens aos seus filhos. O espectador, portanto, se torna testemunha de uma disputa pelo direito à imagem. Ao expor as operações e os dispositivos que a classe média utiliza para praticar a sua vigilância e justapor esses arquivos, Lincoln os destitui do poder do anonimato. E, em contrapartida, coloca os ladrões dos dispositivos como anônimos. Com exceção da última sequência.

Nessa cena, o clipe da música Num Impurra Ki É Pió do grupo Trilha Sonora do Gueto é incorporado ao curta-metragem. O clipe reforça o mesmo método de apresentação dos arquivos encontrados nos cartões de memória e apresenta o território onde as imagens foram descobertas. A demarcação territorial se dá pela lírica: São Paulo, Capão Redondo. Utilizando máscaras de palhaços, imagem associada ao roubo e a violência contra policiais, esses personagens operam uma colisão na narrativa fílmica; eles posam para a câmera e tomam a imagem para si. São heróis dos pivete. Fazem tudo aquilo que a classe média tem medo de fazer. Essas imagens acompanhadas pela música são objetos permanentes de desconcerto. Em um carro, mascarados, eles parecem planejar o próximo assalto. Seguem na função e invertem o jogo. Em um carro-forte, em frente ao banco Itaú, a palavra BRINKS. Uma sátira endereçada aos donos do dinheiro: cês roubam nois, mas nois pega de volta.

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