Dois verbetes ao redor de ‘Greice’ (2024)

Last Updated on: 18th setembro 2024, 04:00 pm

Filiações

Logo nas primeiras sequências de Greice (2024), Leonardo Mouramateus nos dá evidências do tipo de personagem ao qual sua protagonista se filiará. Em um dos dias mais quentes do verão português, Greice perde uma aposta para Lis, sua companheira de república, e como resultado precisa conseguir uma piscina para ambas nadarem. Para Greice, trata-se de uma missão simples: basta apenas encontrar a piscina mais próxima e usar de sua malandragem para conseguir acesso à ela. E assim o faz. A protagonista procura mansões com piscina no Google Maps e, ao encontrar, caminha com sua amiga até o local. Chegando lá, Greice inventa a história de que está procurando locações para gravar um videoclipe e, com um pouco de charme, consegue acesso à mansão. O diálogo entre Greice e Afonso, dono da piscina, decorre entre a grade que separa a casa do espaço público. É então que a câmera que antes acompanhava o caminhar das garotas por Lisboa, próxima a elas, passa para o outro lado. Pela primeira vez na trama, vemos Greice contar uma mentira para se beneficiar, mas, curiosamente, somos posicionados do lado de dentro das grades, junto a Afonso. Vemos frontalmente Greice tentar nos enganar e, assim como todos os personagens que conversam com ela, somos ludibriados pelo seu charme.

A câmera ama Greice e não poderia ser diferente. Afinal de contas, essa afirmação não diz respeito apenas ao trabalho de Amandyra, protagonista do filme, e Leonardo Mouramateus, diretor do longa. Greice é um filme calcado em uma atração entre a câmera e a personagem. Tal dispositivo, por sua vez, não apenas acompanha a movimentação da protagonista no espaço, mas também é cúmplice de sua trapaça. Posicionando-se sempre a favor de Greice, a câmera participa da malandragem como se também quisesse enganar o espectador, tal como a protagonista faz com os outros personagens. Diferentemente dos longas anteriores de Mouramateus, aqui há um desejo da câmera em favorecer a sua protagonista. Enquanto António Um Dois Três (2017) e A Vida São Dois Dias (2022) a câmera segue um regime de transparência em “observar” a movimentação dos atores em cena, filmes protagonizados pelo ator português Mauro Soares (que em Greice faz o personagem Afonso), o dispositivo de Greice é semi-transparente. Ele parece não apenas acompanhar sua protagonista, mas ser levada por ela, como se sambasse junto às suas mentiras. Acompanhamos a narrativa de Greice apenas onde à favorece, ou melhor, vemos apenas aquilo que Greice (e Leonardo) quer nos mostrar.

Nesse sentido, não estamos somente diante de uma relação entre Amandyra e Mouramateus, mas sim na presença de um lastro, um histórico magnetismo que os malandros do cinema brasileiro têm com os dispositivos que os registram. Seja por Jorginho em O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), Aranha/Zé Bonitinho em Sem essa, Aranha (Rogério Sganzerla, 1970), Lúcio Flávio em Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (Héctor Babenco, 1977), Grande Otelo em Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957) ou Lázaro Ramos em O Homem Que Copiava (Jorge Furtado, 2003). A câmera do cinema brasileiro é apaixonada pela malandragem e, mais ainda, é atraída pela postura dos malandros. Entretanto, diferentemente dos personagens de moral ambígua presentes nos filmes de Sganzerla, Babenco ou Nelson Pereira, a Greice de Mouramateus não é dúbia, mas é, de fato, manipuladora — e não por isso menos ambígua. Em outras palavras, Greice não coloca a nossa moral em tensão, pois sua trapaça já preenche toda a superfície sensível da imagem. A malandragem da protagonista que nomeia o longa se aproxima mais de “mentirinhas inofensivas” para se favorecer em determinadas situações, do que um banditismo, como há no cinema marginal, que faz o espectador questionar a sua identificação e complacência com o personagem.

Greice é dotada de algo como um feitiço do malandro, que faz suas mentiras serem críveis e que ela consiga dar seus trambiques sem nenhuma grande consequência. Constantemente, os personagens e os espectadores habitam uma corda-bamba entre crer e duvidar de Greice, confiar que a protagonista se arrependeu e não mente mais e ser enganado por ela mais uma vez. Contudo, essa postura não contempla apenas a protagonista. O filme recompensa quase todos os atos de malandragem de seus personagens secundários: cada um deles tem um pequeno momento de tirar proveito de alguma situação, bem como Greice faz. Ainda que Greice personifique o estereótipo mais evidente, há uma pulverização como se o feitiço infectasse todos que tem contato com ela. Diferente de uma compulsão mitomaníaca, Greice é “amiga das circunstâncias”, como diz Clea, parceira de trabalho da protagonista, e o filme faz disso uma poética que guia toda a narrativa.

Feitiços

Diferentemente do cinismo ou da amoralidade que marcaram os personagens do cinema marginal, não estamos diante de um embate moral entre personagem e o espectador. Ainda que Greice pertença a um evidente tipo de personagem do cinema brasileiro, a protagonista emerge como uma pessoa “comum” que precisa dar o seu “jeitinho brasileiro” (seria esse o feitiço?) para sobreviver em Portugal. Ou seja, o filme busca outro tipo de filiação, uma filiação que é contaminada pela marginalidade e também pelas “comédias Globo”  — o modo que a montagem que costura os acontecimentos, personagens estereotípicos e alguns esforços cômicos. Não há uma relação direta entre ação e consequência dramática, pois o resultado dessas práticas tem nenhum ou quase nenhum peso na trama ou sob os personagens. Ainda que determinados contornos dramáticos ganhem força em algumas cenas, a atmosfera lúdica e o espírito jocoso parecem sempre prevalecer, diferentemente dos longas anteriores, por exemplo. É como se soubéssemos que, eventualmente, o feitiço de Greice resolverá todas as suas pendências.

No mundo dos malandros, Greice está muito mais próxima a André (Personagem de Lázaro Ramos em O Homem que Copiava[2003]) do que ao Aranha. É uma imagem que emula a outra, uma composição que remete a uma anterior, mas que não é assombrada por ela. Embora deseje pertencer a uma estética globalizada, há borras nessa imagem. Há personagens, estereótipos e tipos que adaptam elementos globais ao modo cearense. Ao passo que o cinema independente e/ou autoral caminha com um certo receio em filiar-se à comédias televisivas – talvez por ainda ser considerado como um gênero menor, alienado e despolitizado -, Leonardo Mouramateus parece caminhar em direção contrária. O diretor abraça a matéria comum que habita um imaginário do cinema brasileiro, bem como outros elementos de uma tradição cinéfila. Junto a isso, soma-se elementos populares na internet como a participação de Faela Maya e uma por uma “competição de swingueira”. Tal postura de Mouramateus torna-se uma dobra, uma renovação que pende para dois lados: tanto para os filmes independentes e/ou autorais quanto a comédia enquanto gênero.

É evidente que a discussão sobre gênero cinematográfico é sempre um começo e nunca um fim, pois aquilo que estamos acostumados a compreender por gênero costuma aparecer no cinema brasileiro já como matéria contaminada. Por aqui as coisas são mais opacas; a comédia e a desgraça parecem ocupar uma mesma matéria, como bem aponta Clara Pellegrini em texto sobre “Isto é uma comédia desgraçada”. Greice, afinal, é um filme que aposta em filiações e tipos. Filia-se à comédias Globo, mas também faz uma ode aos malandros. Filia-se às comédias populares, mas também à sua própria classe artística. Aqui reside não apenas a malandragem de Greice, mas também uma trapaça criada pelo próprio filme, um cavalo de troia tanto no cinema independente, quanto nas comédias populares.

Autor

  • Renan Eduardo

    Crítico de cinema e pesquisador. Bacharel em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas e mestrando em Comunicação Social pela UFMG. Atualmente, é editor e redator da Revista Descompasso.

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