‘MaXXXine’ contra os essencialistas

Last Updated on: 27th agosto 2024, 01:38 pm

No livro “Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity”, Judith Butler define o gênero como uma “temporalidade social constituída”, isto é, uma construção histórica produzida por gestos, movimentos e estilos corporais. Opondo-se à concepção que compreende o gênero como uma identidade estável a partir da qual esses gestos e movimentos são produzidos, Butler inverte uma equação de base: o gênero não produz, mas é produzido; ele não institui, mas é instituído – nesse caso por uma repetição estilizada de atos corporais. Nunca um modelo substancial, o gênero é performativo, ou seja, acontece no instante mesmo em que é performado exteriormente, e se ele remete a uma origem, esta já é performativa. Contra uma ideia de essência imperturbada ou forma original intocada, Butler argumenta que o gênero é uma sequência de atos que passam, historicamente, por processos de substituição, deslocamento e repetição deformadora. Uma máscara, e não uma essência. Um acidente histórico, e não um destino. 

Maxxxine (Ti West, 2024) é um filme de gênero – outro gênero. A trilogia de Ti West reacendeu, na cinefilia brasileira, o debate sobre o “verdadeiro” filme de horror, fazendo lembrar as feministas radicais que, na segunda metade do século passado, reivindicavam (e ainda reivindicam) o adjetivo de “verdadeiras” mulheres. Os discursos se apoiam sobre um mesmo pressuposto argumentativo: parte-se do princípio que o gênero – no sentido identitário ou cinematográfico – é uma “essência” que certos sujeitos e filmes não compartilham. Maxxxine, portanto, se torna um filme “sem substância”, “vazio”, “só fachada e pouco conteúdo”. 

Nos filmes anteriores, Ti West colocava em prática uma espécie de “experimento Roger Corman”, que consistia em fazer valer a locação e o aparato técnico para produzir dois filmes no intervalo de produção de um. Corman, patrono dos filmes independentes de Hollywood, constantemente encerrava suas filmagens antes do previsto pelo cronograma, o que lhe permitia reutilizar cenários e atores para a confecção de outro filme no mesmo contexto de produção. Desta vez, a trilogia de Ti West encerra mais ambiciosa, mas o perfume de série B, continua embalsamando esse filme ao mesmo tempo frágil e interessante. Em Maxxxine, vemos Maxine Minx (Mia Goth) alguns anos após o episódio narrado em X (Ti West, 2022), onde a personagem havia sido a única sobrevivente do “Texas pornstar massacre”. Vivendo em Los Angeles e trabalhando como atriz pornô, Maxine aspira à condição de estrela do cinema, conseguindo um papel na produção de horror The Puritaine II

Hollywood é o palco de Maxxxine, locus de onde irradiam seus principais temas. Como em Cidade dos Sonhos (David Lynch, 2001), a arquitetura de Los Angeles, assim como sua ambientação neón, se torna uma extensão fantasmática dos estúdios cinematográficos. Como em Pânico 3 (Wes Craven, 2000), a trajetória dramática da protagonista rumo às próprias origens coincide com uma descida aos infernos de Hollywood (ou, nesse caso, aos cumes: os famosos letreiros na colina cobertos de sangue no final). Tematizando o estrelismo hollywoodiano, o filme começa com uma epígrafe de Bette Davis e termina com a canção de Kim Carnes, “Bette Davis Eyes”. Como um todo, a trilogia de Ti West acusa sua dimensão de suporte para o devir-estrela de Mia Goth, forjado no interior de um gênero – o horror – no qual o trabalho da atriz é constantemente engessado por certas convenções e códigos. 

Quando a diretora de The Puritaine II passeia com Maxine pelas ruas do estúdio, elas chegam ao Bates Motel onde Hitchcock teria filmado Psicose (1960). No trajeto, ela diz algo sobre a ilusão proporcionada pelas fachadas dos cenários, por trás das quais não há nada, se não uma construção vazia, sustentada por vigas de madeira. Mais adiante no filme, Maxine foge de um personagem e busca refúgio na casa da família Bates. No momento em que a protagonista cruza o batente, esperamos encontrar os interiores que conhecemos do filme de Hitchcock, mas nos deparamos com um espaço indistinto, sem paredes, vago e escuro. O efeito, que poderíamos chamar de teórico, ecoa a teoria de Butler: o gênero, em Maxxxine, é pura exterioridade, forma sem substância nem interior. Mesmo quando confere a ilusão de um “conteúdo” intrínseco a ele, trata-se do produto de operações de superfície. 

O que a trilogia de Ti West (re)descobre, talvez sem sabê-lo, é que o horror não é uma essência ou uma semente de onde nascem os filmes, mas um espaço ou lugar de experimentação permanente, uma área rizomática no interior da qual convenções e estruturas constituídas historicamente são reconfiguradas de forma contínua. Em Maxxxine, tudo é questão de fachada, aparência e exterioridade, o que confere aos elementos do filme uma elasticidade plástica sedutora (e nem sempre aproveitada). A estética oitentista conquistada com recurso a filtros e texturas de película, os objetos de arte cuidadosamente arranjados e, sobretudo, o trabalho de Mia Goth (atriz camaleônica que, ao interpretar três personagens diferentes em uma mesma trilogia, escancara essa elasticidade) nunca remontam a um fundo ontológico, mas uma superfície maleável. 

Como alguns de seus precursores – Hardcore (Paul Schrader, 1979), por exemplo –, Maxxxine encena um conflito geracional. A relação de filiação não é somente um dado formal, mas uma dimensão temática. A revelação de que os assassinatos eram cometidos pelo pai de Maxine nos inspira a pensar no drama da paternidade como um prolongamento das questões de genealogia do gênero. Em primeiro lugar, torna-se sintomático que o fantasma que assombra a protagonista – o passado que insiste em persegui-la – seja encarnado pela figura paterna, uma vez que a trilogia está o tempo inteiro acusando sua dívida para com seus “pais” cinematográficos. Em segundo, e consequentemente, a máscara do assassino não serve tanto para esconder uma identidade, mas demonstrar que o pai é, ele também, uma máscara – um disfarce, uma forma estilizada que não remonta a uma substância, mas a um signo exterior.

Somando referências e compondo com efeitos de superfície, o filme de Ti West está mais próximo de Wes Craven do que das supostas influências que ele faz desfilar em suas imagens. Ele parece questionar: e se os filmes nos quais ele se baseia não fossem “modelos substanciais”, origens intocadas, mas signos exteriores de uma forma também sem substância? E se por trás das obras de Brian De Palma, Dario Argento ou Stanley Kubrick não houvesse uma “essência”, mas uma ilusão de essência produzida por inscrições superficiais? Em resumo, e se não houvessem “origens”, mas um reservatório infinito e historicamente constituído de atos e aparências que permitem todo tipo de apropriação e subversão estilizada? 

Nos últimos anos, a ideia de um filme de horror “raiz” vem ganhando forças pela oposição que estabelece com conceitos como “pós-horror”. Discursos essencialistas que reforçam a “identidade” do gênero (“o filme não foi longe o suficiente no horror”, etc.) encontram em Maxxxine o alvo perfeito. Embora compreensível em seu movimento de reação às figuras e aos discursos do “pós-horror”, a ideia de uma significação original ignora a condição socialmente constituída do gênero, marcada por uma multiplicidade de acasos, recomeços, dobras e metamorfoses. Maxxxine, como X e Pearl, pode não ser uma nova etapa nessa sucessão, mas a trilogia de Ti West é suficientemente interessante na forma como permite intuir essas questões.

Autor

  • Luiz Fernando Coutinho

    Doutorando em Comunicação Social no PPGCOM-UFMG. Edita a Revista Madonna e colabora com a LIMITE – Revista de Ensaios e Crítica de Arte. Também atua como tradutor para o Vestido sem costura – blog de cinema.

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