Ver para crer: temores ópticos apaziguados

Frame de Modo Noturno, usada para ilustrar a thumb da crítica de Maria Sucar para a revista Descompasso.

Last Updated on: 26th setembro 2023, 12:01 pm

Uma voz interrompe o silêncio de um travelling em uma rua deserta. Sua narração nos avisa de antemão o artifício visual que permeia o filme: gravações em baixa qualidade de diversas ruas à noite capturadas por diferentes dispositivos de oito amigos que pretendiam fazer um documentário de quarentena, até que a imagem dita um outro rumo. Tal voz, que nos acompanhará até o final do curta, não só é guia como também testemunha do acontecimento. O suspense, então, dá-se na reprodução de uma experiência dita aterrorizante, na qual o espectador acompanha ansiosamente o ponto de virada e suas consequências, podendo vivê-la pela experiência do outro. A fantasmagoria que permeia as ruas noturnas vazias, resultantes dos lockdowns em 2020, combinados aos registros pixelados e ruidosos desses espaços, é o que tenta apoiar o curta nas suas pretensões de suspense. A imagem é o ponto principal da construção de sentido da trama, como já apontado pelo narrador: é nela que mora o perigo e é dela que devemos temer.

As ruas escondem um perigo mortal que se espreita pela sua capacidade de invisível a olho nu, impedindo a habitação dos seres humanos ao espaço público e esconder-se dentro de casa parece ser a única forma de estar protegido diante da ameaça iminente, até deixar de ser. Modo Noturno (Calebe Lopes, 2020) busca, portanto, criar um suspense no qual os temores da rua se expandem para a casa e, consequentemente, para as imagens, porém, inábil de sustentar suas pretensões.

Existe uma qualidade inventiva nos primeiros momentos do curta, quando o narrador nos leva para experienciar o ponto de virada da trama. “Esse plano guarda um detalhe assustador que mudou totalmente o sentido do filme que achávamos que íamos fazer. Vocês conseguiram perceber algo de estranho nele?”, pergunta de modo a convidar o espectador à caça dessa estranheza e nós, curiosos, aceitamos. Somos então apresentados aos olhos vermelhos de uma criatura que se esconde entre os pixels na varanda vizinha e que é inteiramente exposta após a manipulação de um frame.

Frame de Modo Noturno (Calebe Lopes, 2020). Uma imagem consideravelmente pixelada  com foco na sacada de um apartamento, da qual é possível visualizar os olhos de uma figura humanóide, com a cabeça dela em destaque pelo escuro da madrugada.
Frame de Modo Noturno

A figura sinistra é também percebida por todos os oito amigos, apesar de estarem em bairros e contextos diferentes. Sua forma humanóide repete-se entre os diversos registros espaciais como mancha nos espaços escuros de um frame, camuflada pela textura ruidosa das imagens, até que começa a tornar-se cada vez menos abstrata e menos oculta em cada nova aparição. O filme se afasta do estatuto visual que estabeleceu no início e, por consequência, sua construção torna-se menos atenta, pois se antes a criatura incógnita se escondia nos espaços pixelados da gravação, agora ela toma uma silhueta e movimentação completamente humanos, sendo apenas adicionada com a mesma velocidade com que some no meio do quadro. 

O que parece se iniciar como uma busca de lapidar a precariedade do material construído nos ruídos das imagens às possibilidades de habitações sobrenaturais, é interrompido por esse narrador que já sabe todo o rumo da história, não nos permitindo experienciar o oculto pela primeira vez. A ansiedade que antes busca nos proteger do que está nas imagens dá lugar a uma monotonia causada pela narração que revela seus resultados antes mesmo da imagem nos oferecer seus artifícios. Nossos olhos já mal se interessam em acompanhar, pois o ouvido já nos fornece toda a figuração que precede. 

O filme, então, vai gradativamente negligenciando sua fisionomia em detrimento de uma história. A forma torna-se apenas um testemunho do que o narrador nos conta, como se dissesse “a gravação não me deixa mentir”. O suspense que se fazia presente nos primeiros minutos da projeção é censurado pela pressa de uma narração que tem como objetivo nos contar como, onde e quando as coisas acontecem; sem a delicadeza de nos permitir testemunhar o que aquelas imagens testemunharam.

O resultado de um medo provocado pelo contato com as imagens produzidas no filme torna-se não só a conclusão da sua ideia narrativa, mas também um sintoma do maior problema percebido em sua construção: o medo de crer nas próprias imagens. À medida que a obra se afasta do potencial imaginativo das gravações feitas, ela também afasta-se de si, pois foi construída uma noção de que entender a história é mais importante do que experienciá-la. Modo Noturno, desta forma, subestima o poder das imagens que cria, sendo engolido pela ansiedade que tentou gerar.

Autor

  • Maria Sucar

    Licencianda em artes visuais pela UFRN e potiguar. Atualmente coordena e faz curadoria no Gambiarra Cineclube na cidade do Natal. Atuou como júri jovem na 25 Mostra de Cinema de Tiradentes e no 17 Panorama Coisa de Cinema. Contribuiu como crítica no 23 FestCurtasBH e nas revistas F(r)icções, Zanza e Descompasso.

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