O amor faz uma curva

Dois corpos dão-nos as costas em um plano longo. Há uma abertura ao exterior: a janela do carro nos mostra o horizonte que escorrega por de trás do vidro. Vemos rolar uma rodovia. Somos guiados por um plano estático dentro do carro em movimento e o que vemos desse interior, se muito, são os contornos dos rostos dos atores quando viram de perfil e os movimentos laterais de seus corpos. A câmera enquadra de frente a fonte de luz que vem do exterior, mas recusa o ângulo que captura a expressividade de um rosto. À contraluz, a determinação dos traços dos rostos faz-se impossível. Essa penumbra encerra o feitiço que permeia O dia que te conheci (2023). A transição da sombra para a luz nunca desemboca numa revelação plena. Se a visibilidade é mais permeável nos planos-detalhe em que vemos objetos – prateleiras com pequenos adornos, um vaso de plantas em formato de Shrek, azulejos brancos com poás e curvaturas, um imã de geladeira ilustrado por Denilson Baniwa, uma xícara duralex cheia de café no pé do sofá –, ela nunca encaminha-nos a uma transparência, mas antes a uma opacidade insistente, projetada nas superfícies que olhamos de frente. 

O dia na vida de um trabalhador, Zeca, o protagonista do filme, é capturado pela objetiva com uma atenção às séries. Do sono ininterrupto emerge a tentativa do despertar, e assim deparamo-nos com a iminência de uma mudança, mas seria a “nova” incidência tão nova assim? Tanto a continuidade como a ruptura – do corte seco entre os planos longos – encerra um duplo vínculo entre surpresa e perenidade renovada. O mundo consiste aqui num conjunto de séries que se compõem e convergem de maneira regular, mesmo quando estamos face a um acontecimento. A cidade no caminho para o trabalho é constituída de carros parados em meio a um engarrafamento, estabelecimentos ainda por abrir, edifícios e casas, por vezes coloridos, por vezes cinzas, muralismos urbanos… e Zeca. É ele que destoa da paisagem com seu ritmo acelerado em direção ao ônibus, recortado pelo primeiro zoom do filme, ao mesmo tempo em que se integra a ela. É como se o trabalhador guardasse em si o ímpeto tanto de dissolução em meio aos contornos da cidade quanto da diferenciação em relação a ela, demarcando certa urgência acentuada pela trilha, com um tom ao mesmo tempo agônico e intrépido.

Se o dia de Zeca é imiscuído de gestos cotidianos que renovam certa repetição — afinal, até a dificuldade para acordar apresenta um traço característico do protagonista —, temos a sensação do filme também abranger certa abertura à mudança, ao que não poderia ser previsto, como quando o ônibus no caminho para o trabalho estraga, ou como quando Zeca e um outro passageiro decidem comer um pastel do outro lado da passarela, enquanto um novo ônibus não chega. Cada fato inaugura uma série de fatos novos. Há mesmo uma arquitetura que estrutura o filme, gerando essa sensação cambiante entre espontaneidade e artifício, pois estes fatos que advêm parecem guardar em si uma força necessária, mas também reservar uma dose de mistério. Ao mesmo tempo, o novo, ou a paragem que tem lugar em meio ao fluxo, não se arquiteta sob a forma de culminância, mas na mais plena diluição da série em seu próprio prosseguir – variante, diferencial –, e também prenhe de resistência. E é dessa matéria, a princípio amorfa, do puro escoar do dia de trabalho, que renovam-se opressões estruturais e contatos singelos com outras pessoas – na biblioteca da escola, no ônibus que quebra, na conversa de demissão. 

A trilha sonora não redunda. Ela se abre a um encontro entre imagens, ou se quisermos, a sugestões de humor, mas sua impostação não se dá nunca de maneira unívoca. Ao som de Far West I. The Plaza de William Grant Still, Zeca se apressa para chegar ao trabalho. Ocorre um deslocamento da grandiloquência da música de orquestra frente às imagens prosaicas. Essa trilha também invade os nossos ouvidos numa transição abrupta para a inquieta base rítmica de Frank e Tikão, de FBC. Há sempre um esforço para libertar o plano da significação mais imediata, dando a ele subsistência, seja por sua duração reiterada, seja pela preponderância dos planos abertos na cidade, que trazem novos elementos à baila e nos convidam a regimes mais complexos do olhar, em que a  diferenciação entre centro e periferia da imagem não está mais tão bem determinada. Ou ainda pelo uso da trilha sonora que desafia as associações unilaterais e a tentativa já comum de subscrever os trabalhos da produtora Filmes de Plástico a um naturalismo puro e simples. Tais procedimentos não geram tanto um efeito de naturalização da narrativa, mas antes a desnaturalização de imagens prosaicas. O suceder de acontecimentos é encaminhado a imagens que são geradas a partir de tamanha artesania que se desprendem por completo do encargo de encadear a história, operando uma transfiguração do lugar-comum. 

O mistério, nesse caso, tem como vórtice o plano em que Luísa e Zeca descem a Rua da Bahia, com passos nem vagarosos nem acelerados, ao som da trilha extra-diegética de orquestra, em meio a estabelecimentos fechados na rua agora esvaziada. Eles evocam esta experiência extrema de materialidade, em que o verso de Alberto Caeiro “o vento só fala do vento” poderia ser aqui reelaborado para “a imagem de dois corpos descendo a rua só apresenta dois corpos descendo a rua”. Apesar da possível insinuação da imagem acerca do envolvimento entre os dois, o que sobressai é seu caráter de epítome, de renovado enigma que prossegue imiscuído ao livre fluir dos acontecimentos, sem deixar-se sucumbir às simples transposições ou clichês. A imagem se destaca do nexo narrativo linear, por não encerrar o seu regime de referencialidade a nada em específico, e convidar-nos a uma dança perpétua de remissões e expectativas.

Como então explicar este caráter de imprevisibilidade e destino que existe no encontro entre duas pessoas e que é justamente o que assombra o imaginário do filme, desde seu título? Haveria mesmo um evento que ocorreria com seu caráter de cisão entre dois tempos, formando uma cesura insuperável? A condição mesma para o encontro entre Zeca e Luísa – funcionária da escola responsável por anunciar a demissão a Zeca –, acontece em meio à cadência cotidiana e às suas variações de ritmo, complexos de sensações, de silêncios e momentos mais desenvoltos. A reformulação última do gênero “comédia romântica” parece subsistir numa deflação do ponto culminante, assim como na implementação de outras “convenções”. Não se trata mais de seguir as ações do casal traçando uma relação sobretudo de identificação com os personagens. Mas ver o que nasce em seu próprio tempo, alheio à urgência do encadeamento narrativo e do télos de encontro ideal. 

O filme de André Novais está permanentemente aberto ao acaso à medida que o prosseguir para o que seria o ápice da trama é sempre desbastado por algum acontecimento lateral, e o desabrochar de um encontro acontece em negociação com as intercorrências. É o que vemos quando Zeca, no caminho em direção à padaria, pisa em um prego, contrariando as expectativas de completo fechamento da narrativa. O protagonista é interpelado pela contingência. No ato de enquadrar e compor, não há espaço para as apresentações diretas, mas para os comportamentos sempre gradativos dos personagens que mostram a si mesmos desde a superfície. Não há caricaturas psicológicas, mas falas curtas, que por vezes dão a ver um caráter profundamente afetivo, cômico, expressivo, no limite, que desponta inesperadamente. É a força da conciliação entre o controle do acaso e a incapacidade última de aboli-lo que também nos conduz às cenas de beijo entre Zeca e Luísa: diante de um plano fixo frontal, deparamo-nos com a sinceridade e o tesão de um beijo desdramatizado. 

O modo de prosseguir do filme nos direciona à indeterminação presente no durar de cada plano e à busca sempre teleológica pelo amor que se encontra em permanente disputa com a falta de finalismo inscrita a todas as coisas, que renovam um pacto de mistério. O amor insinua-se não tanto como evento capaz de alterar as estruturas do mundo, mas antes como acontecimento que sobrevém às contingências. Lembramos dos versos de Drummond que, como Novais, enxerga esse caráter mínimo do amor, contrariando a eloquência das grandes narrativas: “O amor faz uma cócega/o amor desenha uma curva/propõe uma geometria”. O amor não tem a força de uma grande cesura, mas propõe uma rearticulação entre linhas, formando novos ângulos. Nessa revisita à comédia romântica, nem todos os elementos estrangeiros ao gênero precisam ser expulsos, e nem tudo é um signo do encontro amoroso. 

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