Last Updated on: 9th fevereiro 2024, 05:21 pm
Estamos no Rio de Janeiro, apresentado como um espaço populado por gangues, quadrilhas e esquadrões da morte no meio de inúmeras pessoas que seguem as regras normativas do convívio comum. Em Paixão Sinistra (João Pedro Faro, 2024), o filho de um dos chefes do crime organizado anda pelo centro da cidade. A figura interpretada por Miguel Clark com paletó branco e óculos escuros personifica uma pose fora de moda que destoa dos transeuntes que circulam ao seu redor. Clark encarna uma figura arquetípica da classe alta carioca, que poderia muito bem ter saído de uma novela oitentista, é posto para interagir com uma variedade de transeuntes anônimos que circulam nas ruas do Rio.
Há uma curiosa ambiguidade nesse registro: primeiramente, a câmera de Faro muitas vezes agrava a mistificação dessa figura ao optar por filmá-la em ângulos baixos, de maneira a contrapô-la aos edifícios, às vezes a colocando em silhuetas e destacando-a do cenário. O personagem, à maneira de Paulo Villaça em Bandido da Luz Vermelha (1968), também ganha um breve momento de narração voice-over em primeira pessoa, tomando assim um papel ativo na própria mistificação. Em segundo, o personagem rompe com a barreira de seu universo mítico e arquetípico ao caminhar pelas ruas, por vezes ele conversa com uma ou outra pessoa e até tira fotos. Tal colisão de uma cosmologia quase fantástica com o universo real, cotidiano, também pode ser verificada no cânone do cinema marginal, como em momentos de Copacabana Mon Amour (1970) em que um fantasma persegue Helena Ignez à luz do dia em Copacabana ou ao final de Barão Olavo, o Horrível (1969) em que os atores encenam seus maneirismos nas ruas cariocas chamando a atenção de quase todo mundo que encontram.
O personagem de Clark não é o único submetido a esses contrastes em Paixão Sinistra. Além dele, quase todos os outros atores que figuram no filme possuem o status de mito que é colocado para interagir com o fluxo cotidiano das locações, com um destaque para a figura de M (Cosmo Salime) e seu tapa-olho característico. Essa identidade mítica pode ser tomada como algo característico da atitude fundamentalmente desviada dos limites da convivência civil cotidiana. Basta pensar nas máscaras horripilantes que os integrantes do esquadrão da morte vestem no início.
O problema do crime e da convivência civil parece ser uma questão de particular interesse em Paixão Sinistra. Se os personagens integrantes das facções criminosas andam pelas ruas do Rio sem muito atrito (salvo a questão iconográfica), no âmbito privado elas se permitem cometer atos bárbaros. Dentro de um típico apartamento da zona sul carioca, M tortura um assassino de variadas maneiras, com direito a mutilações, asfixia com saco plástico e ingestão forçada de líquidos. Em outro momento, também dentro de um apartamento, vemos a descrição de uma operação higienista do governo brasileiro que envolvia execuções de moradores de rua. A sociedade, e no caso do filme especialmente a brasileira, contém um germe de pulsões destrutivas que se manifestam dentro de suas instituições públicas e privadas, do Estado aos apartamentos da zona sul, até, por fim, descambar para o crime organizado. As variações desse contexto de violência poderiam ser definidas pelo seu grau de visibilidade e legitimidade social. A civilização é tomada como autofágica, demasiadamente vulnerável aos instintos, paixões profundamente incivis que se manifestam no poder público sob a justificativa da manutenção da ordem; e nesse sentido, é impossível não pensar no momento em que Miguel Clark caminha perto de uma tropa policial.
Não existe salvação dessas contradições. A questão não é que a cidade ofereça um palco nítido para impasses pontuais da vida civil. No filme de Faro os conflitos de seus personagens parecem surgir de um problema de natureza. Ainda que a caracterização do filme seja predominantemente urbana, ele resolve se iniciar e concluir fora do perímetro urbano, na mata próxima a cidade. Nesse início e desfecho temos também, respectivamente, um assassinato (o único que vemos explicitamente no filme todo) e uma ressurreição. Sobre a ressurreição, há de se considerar o tom no momento do ato, menos milagroso do que maldito (talvez em consonância com o segmento da narração que escracha à tradição cristã vista algumas cenas antes). A natureza foi pervertida.
O aspecto sórdido da civilização e da natureza é algo que o cinema de João Pedro Faro vem abordando há algum tempo, desde os adolescentes ao mesmo tempo entediados e violentos de Sombra (2021) até a dupla de criminosos vagando pelas ruas de Esquadrão da Morte (2022). Paixão Sinistra também sintetiza um certo gosto pela abstração visual que ocasionalmente desponta em algumas sequências. Esses momentos também já se mostravam antes nos trabalhos do realizador, principalmente em curtas como Para Sempre Lúcifer (2022). Nessas ocasiões, a abstração de Faro provém de técnicas próprias dos mecanismos de reprodução visual. As lentes de zoom, aliadas ao desfoque ou à operação trêmula da câmera, muitas vezes alteram agressivamente o regime da figuração. Faro parte do registro figurativo para chegar à abstração visual. O efeito dessa técnica é inequivocamente lírico, a profundidade chapada confere uma magnificação extrema dos movimentos não só dos sujeitos em cena, mas também do operador da câmera. O arrasamento da profundidade aliado ao movimento da câmera dá a essa produção de imagens um caráter gestual, deixa transparecer as pulsões subjetivas do artista.
E nesses momentos, curiosamente, Paixão Sinistra encontra um paralelo no cinema mundial, um que foge das referências mais evidentes da produção nacional, no lirismo sombrio e perverso de Philippe Grandrieux, especialmente em Sombre (1998): a narrativa centrada em crimes grotescos e questões de natureza, os personagens cuja caracterização também é de certa forma arquetípica (no caso de Sombre, a figura do serial-killer que se confunde com a figura fabular do “lobo mau”), mas que ao mesmo tempo agem no extremo de seus instintos e as imagens que traduzem suas pulsões de vida e de morte com o movimento, a abstração e a profundidade chapada.
É certo que ver Paixão Sinistra por uma perspectiva psicologizante tem suas complicações. Se por um lado existem ocasiões de maior abstração e intensidade nos movimentos em cena, o filme também alterna para momentos de rarefação dramática, tédio e inação que são vistos em quadros estáticos. Esse tom de inércia e hermetismo de início parece recusar uma leitura psicológica da dramaturgia do filme. Há até de se notar que conforme as narrações em voice-over progridem elas lentamente se afastam de um tom confessional e reflexivo e passam a adquirir um caráter essencialmente descritivo e impessoal: descrições de uma dieta para “eliminar metais do corpo” ou instruções de como propriamente torturar um sujeito. Mas em tudo isso ainda é evidente um gosto por um determinado gênero de imagens, relacionadas à criminalidade e ao horror, com pendor para a baixa definição. Nessas situações, os personagens são dispostos de maneira quase estatuesca, quase não interagem uns com os outros e alguns até mesmo posam para a câmera. Vê-se nesse desfile iconográfico as motivações exibicionistas e mistificadoras dessas figuras, como se até para os atos criminosos e, por que não iconoclastas, fossem necessárias algumas figuras míticas fundadoras, por mais opacas que elas se apresentem.
Os contrastes entre os dois modos de registro, um que pende à inércia e outro afeito ao movimento, colocam em perspectiva a forma lacunar da dramaturgia de Faro, uma que abraça seus abismos. A natureza dionisíaca do projeto é inescapável mesmo nesses contrastes, em um filme que trata do extremo dos sentimentos (com ênfase nos ruins e coléricos). Não há margem para meios termos, ou se assume a postura quase paralítica do mito ou se arrebenta na força de sensações incontroláveis. É uma essência explosiva que molda a dramaturgia com peças simples e rudimentares, com cacos e estilhaços.