Last Updated on: 15th maio 2024, 03:16 pm
A recepção de Propriedade, de Daniel Bandeira, vem representando um fenômeno curioso. A grosso modo, ela parece dividir dois grupos: o que condena a suposta simpatia que o filme demonstra ter pela sua protagonista burguesa (Tereza, interpretada por Malu Galli), com as consequências que isso implica (demonização dos trabalhadores rurais, por exemplo); e o grupo que celebra, justamente, a recusa do filme em apelar para maniqueísmos fáceis (tendência que supostamente estaria em voga no “cinema brasileiro contemporâneo”, esta massa homogênea da produção nacional).
Dentro desse último grupo, há aqueles que acreditam em uma espécie de “imparcialidade” do filme e outros que reconhecem sua aderência à causa dos trabalhadores. O que me parece mais interessante nessa pluralidade de leituras é que, com exceção de alguns falsos problemas levantados aqui e ali (“de quantos nomes de personagens, entre os trabalhadores, você consegue se lembrar ao final da sessão?”, pergunta inacreditável feita por um crítico de cinema), todas encontram maior ou menor respaldo em elementos articulados pelo filme.
No filme de Daniel Bandeira, trabalhadores rurais em situação de trabalho análogo à escravidão se revoltam contra o fechamento da Fazenda Cavalcanti, em Pernambuco. No conflito com seus empregadores, o patrão Roberto (Tavinho Teixeira) termina ferido e Tereza, sua esposa, refugiada no carro blindado da família. Como veremos, a transgressão dessa última fronteira – o veículo impenetrável – que separa trabalhadores e burguesia se torna o problema central do filme.
Se Propriedade suscita tanto debate em torno do problema da “identificação”, é porque esta surge como efeito secundário, e não como motor da figuração: ao filme interessa mais sondar a violência como força desestabilizadora, como energia que tudo perturba, do que localizar suas origens políticas ou respaldá-la em discursos sociológicos. Aqui, ele dialoga com uma de suas referências fundamentais: o cinema de Sam Peckinpah, cuja influência é reconhecida já nos créditos iniciais, decalcados do início de Meu Ódio Será sua Herança (1969). Por sua encenação organizada em torno da noção de cerco, assim como pela violência aí deflagrada, o filme também evoca a energia despendida pelo personagem de Dustin Hoffman em Sob o Domínio do Medo, direcionada para a preservação de um território contra aqueles que buscam invadi-lo.
O roteiro de Propriedade é um mecanismo perfeito, no qual cada engrenagem se encadeia na próxima em uma relação progressiva de ação e reação. A escalada da violência, como em Peckinpah, se faz mediante as respostas instintivas de cada personagem a situações sempre renovadas. Conforme essa violência progride, ou seja, à medida que ela se produz no contato reativo do instinto de sobrevivência com o desejo de conquista ou preservação de um território, as fronteiras entre agressor e vítima se tornam porosas. Lembremos que, no quarto dos feridos, dois corpos jazem lado a lado, portando uma mesma lesão na parte esquerda do rosto: o patrão Roberto e o trabalhador Zildo (Antonio Cleber), neste momento, espelham um ao outro.
Sobre o cinema de Peckinpah, Jean-Baptiste Thoret afirma que, no retorno a uma lógica pulsional de autopreservação (anterior a uma organização política e social), a violência sofrida e aquela praticada por vezes se equivalem. No final de Sob o Domínio do Medo, a brutalidade expedida pelo personagem de Dustin Hoffman termina por igualar aquela perpetrada pelos agressores. Em Propriedade, a consequência dessa abordagem pautada no instinto de sobrevivência é a pulverização de outra fronteira: nos grunhidos de Roberto ou nas arfadas ruidosas de Simas (Samuel Santos), são os limites entre humano e animal que vemos ser tensionados. Difícil não lembrar do Fazendão de Candeias em A Herança, no qual os diálogos eram substituídos, na trilha sonora, por ruídos de animais.
Há ainda outras fronteiras que o filme fragiliza, a exemplo daquela conjurada pelo plano magnífico em que o SUV aparece sendo arrastado pelo carro de bois – imagem-síntese em que o antigo e o moderno se encontram. Ou a fronteira de classe que subitamente se enfraquece para permitir a comparação entre Tereza e Antônia (Zuleika Ferreira), mulheres infelizes em seus respectivos casamentos. Mas a principal delas é ainda aquela, histórica, entre Casa Grande e Senzala, que o filme transforma em uma questão não somente temática, mas formal.
A quem pertence a imagem e, consequentemente, o território da fazenda? O que fazer quando a classe trabalhadora ocupa o plano e, de forma análoga, a propriedade? Quando o patrão, depois de chegar à fazenda, descobre sua casa tomada (Cortázar?), um plano parece concentrar em si esse problema ao qual me refiro. A imagem da antessala – um plano subjetivo do patrão –, antes ocupada pela menina que havia deixado seu brinquedo em cima da mesa, vai sendo aos poucos povoada pelo restante dos trabalhadores. Eles surgem do fora de campo, mas também das zonas escondidas do quadro. A blocagem dos atores e atrizes, sua posição final no plano, parece artificial, como se posassem para uma fotografia. E, no fundo, é também isto que eles reivindicam: o direito de ocupar a imagem.
Nesse momento do filme, a decupagem posiciona a classe trabalhadora de um lado e a burguesia no outro, de forma diametralmente oposta. Em diversos enquadramentos, no entanto, o formato alongado da imagem permite composições em que Tereza aparece no primeiro plano à esquerda ou à direita, e alguém da outra classe é figurado na outra metade, em segundo plano. São nestes momentos que o terror da personagem parece maior, pois já não há nada além da profundidade de campo para separá-la do Outro. O que fazer, então, quando a fronteira de classe promete ruir e os limites que antes excluíam parecem demasiado frágeis?
Embora muitos debates sobre Propriedade tenham girado em torno de uma comparação com Bacurau, eu insistiria (talvez em outro texto) em sua relação com O Som ao Redor. Ou, indo um pouco mais longe, no seu parentesco distante com O Clube dos Canibais, de Guto Parente. Filmes sobre os medos, projeções e traumas de uma burguesia (ou classe média alta) que encontrou no território dos condomínios fechados ou dos prédios uma resposta à angústia do possível desmoronamento da fronteira que a separa do Outro (o pobre, a classe trabalhadora, o negro).
Se a relação com O Som ao Redor ou O Clube dos Canibais me parece frutífera, é porque o SUV blindado surge, em Propriedade, como extensão dos condomínios e prédios com segurança reforçada. Trata-se da última fortaleza, o refúgio derradeiro de uma classe que, por trauma ou ódio, trabalha e sobrevive pela manutenção de uma fronteira. Uma classe que prefere forjar para si um simulacro de realidade (o desenho do cachorro no final) antes de ser obrigada a encarar as coisas de frente. Que prefere ser enterrada viva antes de ter que lidar com a presença do Outro em sua terra e, por extensão, na imagem que sempre lhe pertenceu. O SUV é, aqui, a última caixa preta antes do levante na imagem e pela imagem.
Por outro lado, me pergunto se, por narrar um episódio que tem origem em um trauma (a primeira sequência, gravada em celular), as imagens de Propriedade não possuem a espessura de uma certa fantasia burguesa. Em uma das sequências iniciais, no posto de gasolina, Tereza desenha pessoas do proletariado. A relação parasitária entre artista e objeto repercute, em alguma medida, aquela do rico e do pobre. Subitamente, o objeto (assim como o desenho) devolve o olhar: pânico geral. Tudo não passava, claro, de uma fantasia da protagonista. Podemos ter certeza, nesse caso, que o levante na fazenda realmente aconteceu? Ou ele consiste, na verdade, em mais um fantasma acionado pela burguesia para legitimar o medo do Outro? Depois de enterrada viva, Tereza ouve o som do mar. A praia de Boa Viagem é uma lembrança distante – um outro simulacro – ou o fora de campo do seu inconsciente?