“tudo/ que/ li/ me/ irrita/ quando/ ouço/ rita/ lee”.
Paulo Leminski
Os filmes de arquivo intervêm no destino das imagens e dos sons. Seu trabalho normalmente inclui um novo uso, e porque não, uma reciclagem da matéria que preexiste às intenções do nascente filme. Há, portanto, (espera-se, ao menos) um novo endereçamento das formas, que encontravam-se recônditas, presas em baús esquecidos sob a noite dos tempos. O nome em inglês “found footage” é, nesse sentido, um tanto quanto sugestivo. Como Carlos Adriano menciona: a tradução “mais literal” para a expressão seria “metragem filmada encontrada”, mas quem encontra essas filmagens deixadas para trás? São filmagens procuradas e por isso encontradas, ou filmagens encontradas de maneira inesperada, que ganham novos sentidos à luz de outros momentos históricos? O que quer aquele que “encontra” uma imagem?
Lançado recentemente, Ritas (Oswaldo Santana, 2025) aponta para usos um tanto quanto peculiares que os arquivos vêm ganhando em filmes biográficos no Brasil. Uma premissa nos é apresentada desde o título: há algo que existe para além de Rita Lee enquanto um ícone – uma imagem cristalizada conhecida por seus traços essenciais. Para dar-nos a ver essa multiplicidade inaparente, o filme recorre a materialidades específicas – e nem sempre tão recônditas assim – como seu título parece ansiar: entrevistas concedidas à televisão, gravações de shows e imagens caseiras, ao que tudo indica, produzidas pela própria artista na iminência de sua morte. Além dessas imagens, em momentos que parecem convidar a uma imersão, somos tomados por animações que invadem a tela, sempre em tons que vão do vermelho ao púrpura, cartela de cores que acena à própria estética característica da cantora. Os planos são embalados por seus sucessos, marcados pela síntese entre guitarra elétrica e ritmos nacionais, além das conhecidas letras disruptivas – motivo de censura e prisão pelos militares à época da ditadura.
Os pontos de ênfase do filme são facilmente rastreáveis: a passagem da Rita Mutante à Rita pós-Mutantes, a interação da artista com a Tropicália, o relacionamento com Roberto de Carvalho, com quem posteriormente veio a construir uma família. Timidamente, o discurso a favor da descriminalização das drogas é evocado. Ao mesmo tempo, é muito discreta a menção à causa da prisão da artista, o que é enfatizado – sempre de maneira branda e comemorativa – é o fato dela ter ocupado um lugar à frente de seu tempo, característica que permeia a grande maioria das cinebiografias contemporâneas, conduzidas pelo interesse sobretudo memorialístico. Para completar o ar de descontração – constantemente reiterado – as imagens mais recentes de Rita são sempre caricatas: a avó que permite que a neta escute “funk proibidão”, alguém que diz que aqueles que já morreram têm sorte. A adoção desse tom é, no entanto, insuficiente para retratar uma cantora que soube como ninguém usar a caricatura, o deboche, o humor, enfim, para realizar infiltrações ideológicas.
Como os elementos dispersos que apresentam a vida de Rita Lee são colocados em conjunto é uma questão que se endereça à montagem. Afinal, a partir das imagens “já prontas” o modo de organizá-las é onde jaz a enunciação do filme. Os filmes de arquivo, ao lembrar-nos que estamos vendo imagens produzidas e disseminadas pela indústria televisiva e/ou cinematográfica, tendem a enfatizar o espaço crítico em que são sublinhadas as intenções e circunstâncias da produção de imagens. Entretanto, Ritas não procede assim. Somos bombardeados por vídeos que solicitam, para não dizer que imploram, nossa adesão. Estranhamente, o filme não é capaz de mostrar a ambivalência do trabalho da cantora que mais cedeu músicas a trilhas sonoras de novelas na Rede Globo, enquanto a partir de um falso semblante de lirismo apolítico, entoava letras profundamente transgressoras – no que tange a igualdade de gênero, a liberdade sexual, o erotismo. O modo de prosseguir da obra é antes um sintoma do que se tem feito com a imagem de Rita Lee nos últimos anos, apaziguando justamente o lado insurgente de seu trabalho: de parecer um produto como outros, divertido, facilmente assimilável, enquanto clamava pela liberdade de expressão em tempos de censura. A imagem da artista parece não ter mais ancoragem histórica e subsiste como um símbolo genérico, que não se refere mais a quase nada, mas é repercutido à forma de uma mercadoria.
Num gesto de cosmetização incessante, Santana inscreve as forças contraculturais de Rita Lee num campo de segurança absoluta. Por meio de elipses e omissões dos temas mais controversos, somado a uma montagem enumerativa – que não produz um momento sequer de negatividade, rasura ou deslocamento –, Rita Lee se torna um item colecionável e familiar às pessoas menos prováveis, que aderem hoje a discursos conservadores. As imagens inéditas do filme, autorregistros produzidos pela cantora a partir de um olhar um tanto intimista, se perdem em meio a conteúdos por demais conhecidos, seja pela circulação na televisão ou na internet. As cores vibrantes, índice da desterritorialização da psicodelia, são aqui, transformadas em signos do apelo televisivo. Reconhecido seja o objetivo de prestar homenagem à artista, o modo de fazê-lo parece ser subtraindo o que há de mais determinante em seu legado: a síntese entre gêneros musicais – a união inusitada entre elementos do samba, do baião e da marchinha àqueles do rock. Assim como a verve política de sua lírica, que se sobrepõe a essa base melódica insinuante.
Chega a ser irônico que a aposta do filme seja na “transparência” das imagens feitas por meios de comunicação de massa, de ver nas entrevistas de Rita Lee para TV: “a verdade que fala por si”. O risco é justamente aderir a Rita-fetiche: enquanto imagem sem lastro, mero emaranhado de gestos inconclusivos. Pois justamente ali, na perversidade de vídeos produzidos com fins de vender um produto comercial, se dá a possibilidade de mediação em relação ao discurso anterior, que via em Rita apenas uma menina divertida. Abrindo mão da distância e se aproximando ao máximo da enunciação já feita pelos produtores de imagens, Santana usa os arquivos como possibilidade de encontrar antes “a Rita” do que uma multiplicidade insubordinada vinculada a sua figura. Ritas oscila, portanto, entre uma essencialização simplista da artista e uma dessencialização do caráter por excelência convulsivo do filme de arquivo.