Duas visões de impermanência – Uma sessão de Jerome Hiler e Tsai Ming Liang

Last Updated on: 2nd agosto 2024, 01:43 pm

No último dia de programação presencial do 8º Festival Ecrã, uma sessão reuniu o trabalho de dois artistas que, em um primeiro momento, não poderiam suscitar associações muito óbvias: Jerome Hiler, um dos poucos remanescentes de uma tradição moderna do cinema vanguardista americano, e Tsai Ming-Liang, realizador taiwanês e um dos maiores nomes do cinema contemporâneo asiático. O primeiro opta por um caminho mais simbólico; o segundo, por sua vez, possui decididamente um ideal de imanência. O que uma sessão conjunta como a de Ruling Star (2019) e de Moradia Popular de Xining (2024) demonstra é a capacidade revelatória do gesto curatorial em criar associações entre objetos ao mesmo tempo distintos e semelhantes. Ambos os trabalhos podem ser colocados na seara das práticas e experiências radicais. A sessão de um festival dedicado a explorar esses territórios e suas diferenças fundamentais expõe alguns dos ideais ambivalentes do campo.

Ruling Star, de Hiler, trabalha com uma montagem poética – seus planos se associam de maneira que rompem com a continuidade temporal e espacial. Na sucessão de imagens do filme, ele perpassa por várias locações: templos em ruínas, catedrais medievais, ferrovias e linhas de transmissão de energia. O curta traz à tona a memória de espaços históricos com uma conotação sacra e contrapõe com as locações modernas que, por sua vez, parecem ter a rapidez e a obsolescência encarnadas em suas formas. Uma breve sequência em uma ferrovia de trem imóveis, quase abandonados, Hiler dedica alguns planos para mostrar desenhos grafitados nos vagões. Tanto os templos e igrejas, espaços de liturgia, quanto objetos modernos e seculares, como os vagões abandonados, possuem neles registros, gravuras ou entalhes que deixam a assinatura da cultura que os produziu.

Mais adiante vemos a sequência de uma capela em ruínas, com seus vitrais quebrados e sua arte perdida, imagens que expressam o sentimento trágico do filme em relação a transitoriedade e a finitude. Essa visão da perda, por sua vez, é posta de lado com o símbolo máximo da recorrência e do movimento eterno, já antecipado no título do filme: o sol. É nesse contraste que o drama se revela: a presença da luz solar confere sentido a várias das locações que a câmera visita. A luz é o motivo e tema de várias das formas de expressão artística e litúrgica presentes no filme, dos entalhes nas paredes do templo que remetem ao sol, às gravuras nos vitrais que dependem da luz natural e, por fim, ao registro visual fotossensível da celuloide. Hiler também constantemente enfatiza a essencialidade luminosa do seu próprio registro por meio de planos em sobreposição. A visão das paisagens e dos templos volta e meia é atravessada por chamas e feixes de luz ocupando o mesmo quadro.

A sucessão de imagens que mostram paisagens atravessadas pela história e pela ideologia do progresso ajudam a contextualizar a percepção de Hiler sobre a impermanência tanto do que ele capta, bem como seu meio de captação. As técnicas da arte que o cineasta trabalha são frutos dessa modernidade e de sua fascinação com o movimento. Suas inscrições visuais aspiram a uma condição sagrada e, ao mesmo tempo, são igualmente frágeis e voláteis.

O sentimento de fragilidade ganha um corpo formal não só nas sobreposições luminosas, mas especialmente nas assombrosas imagens finais da projeção. Reflexos da luz solar em um lago iluminam porções variadas de um fundo preto. As sobreposições fazem diferentes porções do quadro se iluminarem consecutivamente. O contraste faz com que as ondulações na água despontem do fundo em cores quase sólidas e tornam-se pequenas porções de luz que aparecem e desaparecem em um espaço negativo. A superfície dessas últimas visões sequer oferece uma base sólida para uma inscrição em função do reflexo da luz se refazer sobre a superfície d’água. Quando o trecho se encerra, resta apenas o fundo, escuridão.

No processo de Hiler, o contraste entre o desejo de permanência e a destruição são dispostos pela construção simbólica dos seus planos e de sua sucessão. É possível dizer que seu foco no potencial de abstração e metáfora das imagens não poderia ser melhor expressado pela sua atitude de recusa ao som, à semelhança de Brakhage. Se o som ajuda a localizar uma imagem em um determinado tempo e espaço, o espectador de seu cinema habita tempos e espaços que coexistem e que se implicam um no outro. Em contrapartida, o processo de Tsai Ming-Liang, em Moradia Popular de Xining, não faz concessões para esse modo de construção. A preocupação com um tema similar, perda e efemeridade, direciona o cineasta para um caminho em que o simbólico é interditado e as instâncias primeiras e imediatas do registro visual e sonoro se afirmam radicalmente.

Um letreiro no início do filme informa que um complexo residencial em Taipei com mais de 500 famílias está prestes a ser demolido. O realizador já tem familiaridade com a locação desde a gravação de O Buraco (1998) e ele se põe a filmá-la pela última vez, agora em um registro documental. Nenhuma imagem no filme permite inferir o futuro daquele lugar. Ao invés disso, os planos, bem abertos como de costume no cinema de Tsai Ming-Liang, se prolongam de uma maneira em que o ritmo natural daqueles espaços se revele gradativamente. Em um mercado situado no térreo do edifício, o fluxo de pessoas entrando e saindo dos estabelecimentos ou os movimentos particulares de cozinheiros embrulhando pasteis, são lentamente revelados conforme os segundos se acumulam no plano. Ora vemos uma série de movimentos repetitivos, como nas cenas do térreo do edifício, ora vemos enquadramentos vazios, cenas de inação. Até mesmo em momentos em que vemos uma locação vazia como uma sala de estar, com informações de quem a habita e onde há um senso de passado impregnado no cenário, o foco é primordialmente no presente, no instante da filmagem que está sujeito a todo tipo de contingência.

Na maior parte do tempo, a representação do espaço ganha prioridade sobre a representação dos seus habitantes, mas existem exceções notáveis. Embora algumas técnicas já consolidadas no repertório visual de Ming-Liang tenham uma maior prevalência – o enquadramento em perspectiva, a valorização de linhas diagonais, a profundidade de foco acentuada – alguns planos isolados irrompem dessa estrutura e se concentram em um único sujeito, retratos. Porém, as imagens desses sujeitos, os habitantes do complexo, seguem a mesma linha de registro não emotiva do restante do filme. Nenhum rosto esboça alguma reação diante das lentes. O aspecto potencialmente sentimental desses retratos vem de informações que não poderiam ser inferidas por eles mesmos.

Tomando a câmera e o microfone como instrumentos de investigação, o filme inteiro parece se recusar a abordar o mundo por um viés psicológico, preferindo a brutalidade da superfície, ver as coisas como elas se apresentam para ele. Nesse projeto em específico, o processo de Tsai Ming-Liang se concentra nessa contradição, empregando técnicas que reforçam a visibilidade e a clareza para então se virar a um mundo que é fundamentalmente opaco. À diferença de trabalhos ficcionais como Goodbye Dragon Inn, o cineasta não pode pedir mais daquele lugar e daquelas pessoas do que suas presenças elementares, presenças que se expandem pela profundidade de campo e pela duração.

Na sessão vemos duas abordagens bastante distintas quanto ao que parece ser a mesma questão existencial: o transcorrer do tempo e a perspectiva de finitude. Hiler não só coloca a visão como o sentido privilegiado para a apreciação, como ele também a aborda de um ponto de vista quase metafísico. A utopia da visão em Ruling Star tenciona suas limitações técnicas e formais. Os meios de inscrição se tornam evidentes, as imagens se revelam em toda a sua fragilidade, sua beleza é fugaz. O que é fascinante em ver o filme de Tsai Ming-Liang logo em seguida é perceber uma preocupação formal inversa que, por sua vez, realça todo o potencial de drama do filme anterior. As imagens e os sons de Moradia Popular de Xining não dão o menor traço de fragilidade, eles vão até o limite do que elas conseguem em termos de visibilidade e agregação de informações e, ironicamente, concluem de uma maneira bastante sóbria. O principal indicador de uma atitude existencial no filme é a postura de filmar em si, de escolher aquele lugar e sentir tudo o que ele inicia e encerra em um dado momento.

No que tange essas diferenças estão aspectos culturais e individuais que apontam duas extremidades quando se fala de um cinema de proposições radicais. Um ideal estético transcendente e outro imanente que a sessão não necessariamente dispõe trincheiras para conflito, mas tampouco pacifica. Ambos partem de uma indisposição comum e, quando combinados, esclarecem suas motivações e se revigoram.

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