Tijolo por tijolo: entre a carne e o concreto

A primeira imagem de Tijolo por Tijolo, documentário que teve sua estreia na Mostra Competitiva Brasileira do 13° Olhar de Cinema, apresenta uma criança que se filma e fala alegremente sobre uma casa em construção, que se situa ao fundo no espaço. O garoto apoia o celular na horizontal e inicia o falatório acerca de alguns elementos que não estão presentes na imagem: o seu quarto, a cozinha, a sala e a sua irmã que está por nascer. A casa em construção e a irmã no ventre compõem duas forças que centralizam o diálogo do menino. Por sua vez, são esses mesmos elementos que irão servir para movimentar a família ao longo do filme, principalmente a mãe e o pai: Cris, a gestante, recém influenciadora digital, que tem o objetivo de comprar as coisas da casa, e Albert, pedreiro faz-tudo, responsável pela construção da casa da família. Os dois processos em gestação – da filha e da casa – são registrados pelas câmeras dos realizadores e dos retratados, moradores da periferia de Ibura, em Recife.

A dinâmica familiar é organizada por meio de diferentes modos de registros para cada personagem. Uma câmera próxima e movente segue Cris no trabalho digital, na ida ao hospital e no cuidado com as crianças. Ao pai, Albert, câmeras distantes e fixas registram a organização dos tijolos, da fiação ou a subida na escada com alguma ferramenta. À mãe, é reservada a correria, o falatório com os filhos e a tensão da gravidez. Albert à planos silenciosos, cujo som marcante é da pá pegando gesso. Ainda que seja o pai o responsável pelo espaço em construção, à ele é reservado o segundo plano da trama, como um apoio e segurança para a mãe da família, que acumula tarefas. Em suspensão a tudo isso, está a gravidez. É curioso que o gesto mais marcante de aproximação do casal ao centro da imagem seja quando o marido se aproxima da mulher deitada no leito, com a criança carregada pela enfermeira, e registra uma foto para publicação nas redes sociais.

Nesse vai e vem de movimentos, Tijolo por Tijolo busca aproximar dois processos transformadores dentro da família Ventura: a gravidez e a edificação do imóvel. Cada um centrado mais em um personagem do que em outro, mas todos atravessados por essas duas forças fundacionais. Se vemos a casa tijolo por tijolo, como diz o título, é também para acomodar a nova cria em gestação, mencionada pelos personagens e percebida na imagem. Em contrapartida, a gestação, por simplesmente não operar nenhuma função ativa até o parto em si, age como uma “espectadora” que circunda as razões e impulsiona os acontecimentos à sua volta, como motivo para as tomadas de decisões da família. 

A figura central dessa relação, que carrega a filha e movimenta a casa, é Cris, que, assim,  se torna a figura de base das imagens. O seu carisma e o seu constante movimento, entre as tarefas da casa e as idas ao médico, compõem o ritmo do filme, ao ponto que a sensação de respiro é justamente quando ela descansa junto aos filhos na cama. A câmera registra esse cotidiano sem interrompê-lo, mas também participa da vida dos filhos, que usam seus próprios celulares para se auto-representarem, filmarem suas casas (a da avó e a que está em construção) e fazerem menções aos diretores em momentos de comemoração. Os arquivos completam o período retratado e dão a visão dos pequenos, que estão ausentes de boa parte das cargas de responsabilidade envolvidas na gestação da casa e da cria, sobre esse momento.

Contudo, a construção da casa não é finalizada com o nascimento da filha e passamos a acompanhar outros aspectos de Cris, agora como auxiliadora e uma espécie de líder das mulheres da periferia de Ibura. Dessa forma, se existia um jogo entre as gestações e o movimento da família, ele some e é a figura da mãe que se coloca à frente nas imagens finais, ainda que haja uma cena final nos créditos com todos os personagens interagindo com a câmera. Quando um dos pilares é finalizado, o filme celebra a figura que possibilitou os espaços e gerou os processos formadores da trama.

Autor

  • Egberto Santana

    Formado em jornalismo pela Unesp de Bauru em 2021, é co-fundador da Revista Descompasso, repórter correspondente de Poá na Agência Mural de Jornalismo das Periferias, redator freelancer e crítico de cinema em vários cantos. Possui textos publicados no Plano Aberto, Persona Unesp, Corpo Crítico (2020) Mostra Cinema do Presente (2021), Nicho 54 (2021) e no Laboratório Crítico da Revista Crítica de Cinemas Africanos (2022)

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