No corre das notas

Last Updated on: 14th julho 2024, 09:38 pm

O filme Um é Pouco, Dois é Bom (Odilon Lopez, 1970) é um longa-metragem dividido em dois capítulos. O segundo já pertencia à esfera pública, pois está disponível no YouTube com o título “Vida Nova… Por Acaso”. O primeiro, por sua vez, ainda era desconhecido pois tratava-se de um trecho que foi “perdido”. A restauração e a “redescoberta” da primeira história, nomeada “Com um Pouquinho de… Sorte”, nos colocam frente não apenas a um material novo, mas a uma nova possibilidade fílmica em função do contato entre ambos os capítulos. Ainda que funcionem de forma separada, o visionamento em conjunto convoca, involuntariamente, a atenção para algum elemento ou traço narrativo que possa unir as duas histórias, nesse caso: uma divertida e aterrorizante busca pela sobrevivência diária.

O primeiro capítulo gira em torno da vida de Jorge e Maria, um motorista de ônibus e uma atendente de loja. Um casal feliz, simples, modesto e simpático. No decorrer da trama, terão que enfrentar desafios como lidar com a demissão de Maria após a gravidez e ameaças de despejo da casa em que vivem. O tom que se segue é de uma comicidade cotidiana e de rápida progressão dos acontecimentos. A inserção de toques curtos e graves de um piano na trilha da narrativa, aos poucos, transforma esse clima leve, mas sem embaraçá-lo por completo. Investindo no tom prolongado da comédia, como no diálogo entre bêbados do patrão com Jorge no bar ou na vizinha fofoqueira que inventa histórias sobre Jorge na cadeia, Odilon dá contornos de chanchada para sua tragédia.

Na medida em que as oportunidades do personagem se reduzem e o casal se isola, o filme ganha contornos dramáticos que desembocam na espantosa cena da tragédia de Jorge. Encurralado pelos engravatados, os homens da lei sobem à sua casa para despejá-lo. A câmera na mão ressalta o estado de desespero do personagem que, ao fim da sequência, encontra-se estático pela imagem e encolhido como um bebê. 

Já em “Vida nova…por acaso”, a história é centrada em Crioulo e Magrão, ex-detentos recém libertos que ganham a vida batendo carteiras no centro da cidade. A banalidade desses acontecimentos é desviada quando surge a figura de uma mulher branca e loira, a ‘fada boa’, que convida Crioulo para entrar em seu carro e partir em uma viagem à praia com seus amigos hippies. Num primeiro momento, o que salta aos olhos de Crioulo é o bolo de dinheiro que ele vê na carteira da mulher. No entanto, ao longo dos dias em que eles se encontram, é a gentileza disfarçada de cinismo e a menção ao passado, disfarçado por uma nostalgia racista, que conquista Crioulo e o faz perder qualquer vontade de assaltar. Os diálogos da loira são sinuosos e misteriosos, mas também agradáveis e acolhedores. Sua origem desconhecida, sua repentina aparição e a evidente diferença de classe e raça, tornam essa figura ainda mais fascinante, que hipnotiza pela força social própria de seu estereótipo.

O filme pontua essa confusa disparidade por uma trilha leve e animada que, aos poucos, se concentra na viagem do casal com os amigos de Loira. Entretanto, surge um novo elemento: uma pessoa de vestes circenses saltita, olha para a câmera e leva o grupo até terrenos vazios. Em um gesto ácido do filme, essa criatura desconhecida faz todos dançarem, se beijarem e protestarem nos muros. No fim da sequência, Magrão encontra Crioulo e ambos são entregues à polícia. Na porta da cadeia, há uma espécie de looping social e surreal: Crioulo e Magrão são presos e vemos, sem que eles percebam, a mesma dupla se encontrando na cadeia como duplos que sempre retornam.

Há, portanto, intensas transformações de gêneros por códigos sonoros e encenações díspares. O uso do terror e do suspense surge como uma maneira de espreitar as relações de classe e raça que permeiam a sociedade e a comédia do cotidiano suspende tais elementos internos à obra. Ao fim do dia, são pessoas comuns tentando sobreviver, mas que se deparam com barreiras de uma estrutura social. É como se o elemento social que interrompe o progresso fosse o dado assombroso que irá confundir e remexer a trama, bagunçar a mente dos personagens e, nas mãos de Odilon, ser mais uma ferramenta para brincar com as possibilidades do cinema.

Autor

  • Egberto Santana

    Formado em jornalismo pela Unesp de Bauru em 2021, é co-fundador da Revista Descompasso, repórter correspondente de Poá na Agência Mural de Jornalismo das Periferias, redator freelancer e crítico de cinema em vários cantos. Possui textos publicados no Plano Aberto, Persona Unesp, Corpo Crítico (2020) Mostra Cinema do Presente (2021), Nicho 54 (2021) e no Laboratório Crítico da Revista Crítica de Cinemas Africanos (2022)

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