Last Updated on: 9th fevereiro 2024, 10:55 am
O funk do estado do Rio de Janeiro guarda uma rede de subgêneros que variam em ritmos, timbres e códigos regionais expressos nas batidas e nas letras, com seus maneirismos que se modificaram ao longo do tempo. Variações estas que estão desde as montagens dos bailes de corredor dos anos 1990 e 2000 até o Tambor Xereca contemporâneo. Mesmo nesse caldeirão, alguns elementos culturais se assemelham a ponto de reconhecermos a regionalidade do “funk carioca”. Com isso, o audiovisual parece compor e evidenciar uma conversa entre esses diversos estilos, para além de uma etnografia das imagens e códigos culturais regionais.
O vídeo Mega – Se Piscar já era (2019) do DJ e vídeo-artista, Sorrizo Ronaldo; o 20 MINUTINHOS TOMA MARRETADA DO THOR X BAILE DO HIMA [ DJ LUAN DO FINAL AO VIVO NO PEGA DO HIMA ] (2023) de Somália Sucessada e 30 MINUTOS VOL. 2 AO VIVO NO BAILE DO EGITO 🇪🇬 [CHAPADÃO] 2023 (2023) de Tiago Silvestre são exemplos de um audiovisual funkeiro que expressa uma proximidade estilística, por meio de uma relação intrínseca entre ritmo visual e sonoro através do processo de tradução da música para a imagem. Além disso, há alguns pontos de convergências audiovisuais que indicam a expressão de um movimento em comum entre esses vídeos. O uso de imagens de arquivos na montagem, a expressão de uma auto imagem como performance e produto e, por fim, a composição em múltiplas telas.
“Mega – Se Piscar já era” é uma interpretação visual da música homônima, realizada também pelo próprio DJ. “Sorrizo Ronaldo é um cantor, DJ, desenhista e produtor audiovisual brasileiro. Atualmente posta suas edições em seu canal no YouTube que carrega seu nome. Seu trabalho mais icônico é conhecido pela sua edição, chamada MEGA”1. O vídeo tem em torno de 5 minutos e é marcado pelo funk que autorreferencia o artista; os cantores citam o seu nome na letra e atrelam a sua alcunha ao discurso. Batidas da música e interferências da mixagem na composição do vídeo são postas ao lado das dezenas de selfies do autor junto a outras imagens sampleadas. Nessa utilização de selfies, os vídeos se tornam, dentre várias outras coisas, um álbum pessoal de retratos reciclados em uma nova composição artística. O sample aqui é proveniente dos próprios realizadores e advém de fotos, feitas para outros contextos, que são re-empregadas nessas obras. Essas exposições da vida privada, comuns aos filmes caseiros e as fotos e vídeos compartilhados nas redes sociais, se tornam, aqui, elementos centrais das obras. Nesses vídeos, os editores são apresentados diretamente como autores: “Esse aí é o Tiago Silvestre, o pai da facção”
A escolha do “Eu” como marca, commodity e expressão artística que hibridiza público e privado é parte constituinte da cultura do funk. É no final da primeira década dos anos 2000 que a escrita e a valorização de si prolifera-se através de diversos mecanismos (como as redes sociais) e cria uma nova composição de subjetividade pós-moderna e multipolar. Essa nova composição difundida socialmente é, segundo Paula Sibilia: “Uma tendência à construção de si sob a lógica da visibilidade. Por outro lado, prolifera uma auto-estilização dos sujeitos como personagens inspirados na estética e nas narrativas audiovisuais”2. Simultaneamente, nas redes sociais, o incentivo massivo da produção de selfies cria lixos virtuais constantes. Em um paradoxo de valorização e banalização, o procedimento da reciclagem de suas próprias fotografias, método de produção desses artistas, inverte o descarte em uma manobra de fixação das imagens torrenciais do Eu. Assim, essas imagens são preservadas em um álbum híbrido e postas ao mundo em uma tradução formal da enxurrada de informações imagéticas que tentam se aproximar ao ritmo acelerado do funk.
A aproximação do ritmo é processada numa montagem que provoca pulsões fisiológicas no espectador através de certos procedimentos rítmicos, como o flickering, que traduzem a sensorialidade das ondas sonoras, das batidas, para a torrente cintilante de luz em nossos olhos. Essas imagens de selfies animadas no funk são a base desses vídeos. No vídeo de Sorrizo Ronaldo, por mais que também haja “sampleamento” de outras imagens de um imaginário popular dos anos 2000 (como o comercial da Pepsi de 2004 com Britney Spears, Beyonce, Pink & Enrique Iglesia; vídeos do Roda de Funk3 e do personagem Poderoso Castiga de Eduardo Sterblitch), o que fundamenta a superfície do vídeo são as suas selfies. E o que as modula é como a montagem opera as fotos como um breakbeat audiovisual. É nesse sentido que a auto estilização dos sujeitos é realizada em cada uma dessas obras, com suas diferentes formas de lidar com o Eu, junto das interpretações visuais das músicas utilizadas em cada vídeo/música visual.
A tradução musical, para além da relação do Eu na letra e na imagem, se dá pelo ritmo dos cortes e pela quantidade de imagens adicionadas, que se relacionam com a intensidade da batida, os recortes e com o vai-e-volta produzido pelo DJ e pelo editor. Tais recortes são próprios dos Breakbeats, como o funk. As imagens vibram como luz estrobo. É adicionado, nas tônicas da batida, o Eu reciclado, em meio a tanta imagem e cintilação, que acaba se dissolvendo em meio aos excessos. Para além dos movimentos realizados digitalmente, seja de deslocamento, divisão ou junção, o compasso da montagem é interferido por um frame em branco. É dessa forma que a cintilância anima as fotos adicionadas e ajuda na tradução de som para a imagem. No caso dos vídeos abordados, o efeito parece remeter ao corte e loop próprio das músicas, recriando a reação das frequências sonoras que tocam nosso corpo e criam estímulos de palpitação. Por outro lado, também remete a outros mecanismos próprios dos espaços de apreciação desse tipo de música: as pistas e os bailes, onde as caixas de som pulsam numa velocidade capaz de causar uma sensação similar à da luz estrobo.
A cintilação relacionada a estes movimentos musicais também pode ser comparada a tradição dos Flickers Films, gênero de investigação cinematográfica que busca trazer na variação de formas, cores e luzes, diferentes estados de consciência e experimentação formal. Em Mega – Se Piscar Ja Era, a música, ao se fragmentar ainda mais e ganhar momentos de maior aceleração, evoca uma imagem que acompanha o o rosto de Sorrizo Ronaldo que aparece como uma sequência de flashes diante de nossos olhos. As “500 fotos por minuto”, como apresentada na letra, habitam um misto entre apreensão e inapreensão: algumas poses, ao se repetirem, permanecem na retina enquanto outras se esvaem.
Já em 30 MINUTOS VOL. 2 AO VIVO NO BAILE DO EGITO 🇪🇬 [CHAPADÃO] 2023 há menos fotos, mas elas se repetem com maior frequência, possibilitando uma maior intimidade do espectador com elas. O recurso estético é aplicado em um efeito anteriormente “pronto”, de modo que a inserção dos arquivos são dessincronizados com a batida e aparecem de maneira maquiada por sua aplicação repetitiva e desconectada ao conteúdo sonoro. Ainda assim, seguem a tendência do ritmo acelerado e as pausas dos DJ’s.
No vídeo, 20 MINUTINHOS TOMA MARRETADA DO THOR X BAILE DO HIMA [ DJ LUAN DO FINAL AO VIVO NO PEGA DO HIMA ] (2023), as fotos criam uma sensação de sobreposição por meio de uma ilusão de montagem. Elas são reduzidas em fundo preto, emolduradas pelo ecrã 16×9 e, posteriormente, justapostas pela ampliação das mesmas imagens, que tomam conta do quadro. A montagem e a inserção desses frames simula a métrica sonora do 4 por 4 desse funk, continuada por outras fotos que criam a ilusão de sobreposição, tal qual um taumatroscópio, enquanto a luz pulsante incide em nossa retina. Ilusão e pulsão fisiológica se somam ao grave da música num delírio audiovisual.
Em especial, o vídeo do Sorrizo Ronaldo dispõe de elementos que se assemelham às tradições do cinema experimental. A movimentação interna das fotos cria uma hiperestesia proposta pelo vídeo no conjunto da montagem que acompanha o ritmo, a música e o flickering. Essa hiperestesia se liga tanto ao excesso de informação da cibercultura, quanto pela pulsão movente dessa música. Com isso, o movimento interno das fotos, como formas geométricas preenchidas pelas selfies, remonta os princípios da “música visual” dos filmes de Hans Richter, Vick Elling e Oskar Fischinger, onde formas geométricas, animadas em 2D, percorrem o quadro, aumentam de tamanho e se sobrepõem, simulando um espaço tridimensional na guia musical ou na simulação de um ritmo sonoro.
Essa multiplicação de quadros presente nas três obras parece ser um avanço quantitativo das telas triplicadas que circularam em divulgações estáticas e audiovisuais do funk carioca em meados da década passada. Neste lugar, o tríptico audiovisual já estava presente até mesmo antes da popularização do TikTok no final de 2018, como nos vídeos da Iasmin Turbininha, que, assim como outros funkeiros cariocas, também utiliza o rosto como marca e sample.
Em suma, a arqueologia dessas imagens ajuda a destacar a articulação de uma estética oriunda do funk em conjunto com as redes sociais. Portanto, o ato de situar esses vídeos como expressões experimentais dentro da arte, em conexões a outros movimentos artísticos, é uma forma de compreender os múltiplos gestos recombinantes dessas obras como produções vivas, por meio do processo de tradução do som para a imagem, que resulta em uma expansão da sensorialidade sonora das batidas do funk em suas baixas resoluções e fidelidades que dançam, se multiplicam e se transfiguram.
- Nota sobre o Sorrizo Ronaldo. Disponível em: <https://www.last.fm/music/SORRIZO+RONALDO/+wiki> ↩︎
- SIBILIA, Paula. Subjetividade nos gêneros confessionais da Internet. Rio de Janeiro, 2007. ↩︎