Aos amantes da Previsão do Tempo: após doze meses de publicação, podemos afirmar, com tranquilidade, que a coluna veio para ficar. O espaço, que surgiu com “a ideia de um comentário rápido acerca daquilo que foi visto, pensado, discutido ou sentido no mês que se passou”, provou-se um lugar de leitura e embate com as questões emergentes do contemporâneo. Podemos pensar, por exemplo, no mosaico que nossos editores e redatores constroem a cada mês a partir de seus interesses particulares – os quais alcançam o debate público. É o caso da relação de Ana Júlia Silvino com a música; de Egberto Santana com a prática cineclubista; de Luiz Fernando Coutinho e Rubens Fabricio Anzolin com a cinefilia; de Maria Sucar e Helena Elias com a arte contemporânea; de Nicholas Correa com o cinema experimental e de Renan Eduardo e Lucas Honorato com a cultura. Um mosaico vasto de linhas de interesse que demonstra apontar para um conjunto de correspondências em lidar com a amplitude da arte, não somente do cinema.
Nesta edição não é muito diferente: Egberto escreve sobre a mostra O Funk no Cinema, Helena escreve sobre uma sessão que viu no Forumdoc.bh, Coutinho escreve sobre a cinefilia, Lucas escreve sobre Darks Miranda e Juliana Fausto, Maria escreve sobre uma performance que viu em Natal e Renan escreve sobre o Tiny Desk Brasil.
Segue, abaixo, a última Previsão deste ano, na qual também desejamos um Feliz Natal e um próspero Ano Novo a todos os nossos leitores e redatores. Voltamos em breve com mais novidades e textos por aqui, apostando sempre no amor pelo cinema brasileiro, na experimentação e nas margens e dobras que a arte e o pensamento crítico podem proporcionar.
Boa leitura!

No lugar da projeção
por Egberto Santana
Venho novamente a essa coluna para falar sobre o ato de exibir filmes, projetá-los para um público, propor discussões e reflexões em torno de imagens e sons. Desta vez, não mais em um cineclube, mas numa mostra de cinema na minha cidade, Poá. A mostra O Funk no Cinema surgiu do desejo em exibir filmes que tratam do funk, cientes que esse recorte é efêmero. Entre documentários, ficções e “clássicos” registros das redes, a programação passou uma visão de como o audiovisual tem se aproximado do funk ao buscar retratá-lo, seja pela mescla entre filmagens atentas dentro do baile e entrevistas com MCs, DJs e dançarinos; seja por um modo de fazer cinema sobre funk que se assemelha à percepção da própria escuta. Tal percurso esteve presente ao longo de dois fins de semana em dois espaços culturais de Poá, um mais periférico e outro próximo do centro: uma casa de barro e um teatro. Eu, que sempre fui muito interessado em estar próximo da tela para uma completa imersão do filme, me vi mais fascinado pelo olhar dos outros para a tela. Estar atrás das cadeiras e poder ver todos concentrados em cada sessão me trouxe uma série de importâncias que, se não fosse pelo trabalho anterior de organizar o evento, eu não enxergaria como uma demanda. Me atentava para a cortina do camarim e o vento da tarde ensolarada atravessando o olhar da platéia na projeção, interrompendo a escuridão que caracteriza estar dentro do cinema. Em outros momentos, me dava por vencido. Aceitava as circunstâncias do espaço e me orgulhava do que estava acontecendo. Apreciava a experimentação audiovisual de Sorrizo Ronaldo na tela de uma casa de barro ou do tuin nas caixas de som de um espaço de teatro da cidade. Não estava de projecionista, mas me vi hipnotizado pelo “entre” coisas que formam os pequenos espaços constituintes de uma mostra de filmes. No término do evento, sonhava com outros lugares que poderíamos alcançar, em salas de cinema com cabines e tecnologias próprias para a exibição. Mas o germe sempre vai estar lá, na cortina do camarim de um espaço de teatro e na parede de uma casa de barro.

Uma noite dentro da outra
por Helena Elias
Segundo dia de Forumdoc.bh, às 16 horas de uma sexta-feira. Em frente à sala de cinema, uma fila se forma. Adentramos à noite. Noite da experiência cinematográfica ela mesma, que interrompe a incidência de luz natural que tinha lugar lá fora. Só não sabia que encontraria uma outra noite dentro da noite, apesar do nome Nuit Obscure – “Ain’t I a Child?” (Sylvain George, 2025), poucas vezes na vida temos diante de nós um filme que arrisca chegar tão perto da penumbra, de um tom de preto que impregna o fundo da imagem e ecoa durante dias na retina. Nuit Obscure acompanha jovens imigrantes que deambulam por Paris, sempre às bordas da Torre Eiffel, epítome da cidade luz. Os pontos turísticos são matizados por essas presenças pulsantes, que iluminam a contrapelo aquele entorno que parece sempre intocado no nosso imaginário – com luzes de seus celulares, com isqueiros, com armas de fogo. As imagens cunhadas desde uma relação intrincada com o fogo não poderiam ser consideradas estritamente documentais, uma vez que amplificam nossa zona de contato com o mundo, fazendo emergir outros regimes de visibilidade, são como dobras no que subsiste. Como Marie-José Mondzain enfatizou em seu comentário ao final do filme, há um trabalho partilhado entre luz e noite: é preciso de luz para melhor ver o que é próprio à noite. Diante da palpitação daquelas vidas, amplificadas pelos jogos de luz e sombra, pela insinuação de profundidade criada pela penumbra que tudo reveste, acolhemos, de maneira a dispensar qualquer vínculo cognitivo, aquelas imagens. Ao fim, um tipo de sentimento estranho nos invade: tínhamos recebido aquilo que não esperávamos, e tampouco podíamos acolher. A pergunta, formulada por Mondzain, permanece latejante, na cabeça (talvez no corpo) de todos nós que vivemos aquela noite na sala de cinema: “de onde vem a luz?”

Deixem a cinefilia morrer
por Luiz Fernando Coutinho
A cinefilia de internet continua entristecedora: esforça-se cada vez mais para transformar possibilidades de troca em vitrines de autopromoção; para sufocar o pouco oxigênio que ainda nos resta dentro de uma câmara irrespirável de convenções; para fazer do amor pelo cinema uma guerra cultural de cartas marcadas. Ainda os mesmos filmes, os mesmos cineastas, as mesmas batalhas, uma após a outra… E se enfiássemos nosso querido Godard no cu, apenas por um tempo? Penso, aliás, no quão irônico é o fato de uma revista recém-lançada (vida longa a ela, apesar de tudo!), escrita apenas por homens e reciclando os mesmos cineastas e debates, ostentar o nome “Exceção” em homenagem ao saudoso Jean-Luc. Não sei se já conheci essa velha amiga, a cinefilia, de outra forma; mas sonho que um dia ela se torne mais fluida e menos enrijecida, mais criativa e menos tributária desses patriarcas quarentões cujo trabalho crítico foi e continua sendo uma longa competição viril para descobrir quem tem o maior pau. Poucas coisas são mais bolorentas que essa seriedade ritualística em torno dos “grandes” filmes e cineastas e essa “sepulcral noção da gravidade-do-instante” (Cortázar) que alimenta textos e ideias sobre eles. Faríamos bem em inalar outros ares, buscar outras referências e cruzá-las de modos inesperados, traçar um caminho próprio, selvagem e imprevisível, dentro da cinefilia e, sobretudo, fora dela. Com sorte, com um pouco menos de supereu e de homenzinhos neuróticos-obsessivos. E com um pouco mais de poesia.

Louvar os desamados da terra
por Lucas Honorato
As pombas não são o que parecem. Cinema ao vivo de Darks Miranda e Juliana Fausto apresenta em três atos os desamados da terra: 1. Pombos, “exímios navegadores aéreos transformados em inimigos públicos da paisagem urbana”. 2. “Galinhas poedeiras de ovos cósmicos”. 3. “Morcegos reencarnados”. Cinema de atrações misturado com leitura dramática, performance, escultura. Cinema e teatro. Cinema ao vivo. Em cada ato, acompanhamos um ensaio sobre esses animais com diversos jogos e dispositivos cênicos. Tais quais pombas sindicalistas e vocalistas de bregas se juntam à projeção cinematográfica de um remix dos primeiros cinemas e uma galinha antropomórfica esculpe ovos de argila.
Ao digerir esse cinema de atrações ao vivo num bar, junto de amigos e gracyovos cósmicos, percebemos uma forte presença da peça na arte contemporânea por sua transtextualidade e transmidialidade, seu borramento de linguagens descritas acima em conversa com a suas devidas materialidades e temporalidades justas e sobrepostas. Também é possível observar a guinada discursiva que envolve a atenção à outros seres que não humanos e humanos tratados como “Outros”. Discussão que envolve a crítica ao antropoceno e aos condenados da terra, sem que seja afetado por vícios da contemporaneidade, como discursos sublinhados, essencializados e calcados numa representação realista. De modo que simultaneamente traz uma inscrição palimpsesta, crítica e dialética ao pensamento moderno artístico.
Sobre o borramento, os fantasmas ressurgem pela projeção fílmica que inicia numa tela suspensa e divide protagonismo, em primeiro momento, com a leitura dramatizada de Juliana Fausto como uma representante do sindicato dos pombos. Posteriormente a mise-en-scène se expande com outros elementos que surgem de modo compósito a cena, com Darks Miranda enquanto pessoa-pombo sendo iluminada e outro vídeo é projetado de maneira mais transparente no fundo do palco. Assim a composição que parecia anteriormente separar figura e fundo, sujeito e tela, agora se emulsionam. Tela é figura, sujeito é fundo, tela é fundo e essa alternância de posições dialoga plenamente com as questões de natureza e cultura levantadas pelo texto dramatizado e a proposta cênica de convocar os desamados da terra ao som de Amada Amante de Roberto Carlos. Humor é embalagem constante, mesmo que em jogo com as passagens mais sérias que vão desde a negligência do cemitério dos escravizados no cais do Valongo até à “pombitude” e sua queda como ícone nobre à párias da modernidade urbana, simultaneamente seres marginalizados e símbolos do colonialismo e do fracasso urbano capitalista.
Ainda nessa emulsão, a peça evoca e mistura a pesquisa das duas autoras, das feras aos monstros, de modo que Darks Miranda e Juliana Fausto produzem em seu último ato a figura da quimera como uma imagem adequada que ecoa na peça. Metonímia extraída e reinserida ciclicamente. A quimera extraída de comolli vai para Darks enquanto título de filme e é reaproveitada como sample cênico e título do último ato. Parte pelo todo do ato e da obra composta de corpos feitos de outros corpos. Feras desamadas aqui louvadas em uma atração brega.

O erótico no processo
por Maria Sucar
Tive a honra de ser convidada para presenciar o primeiro ensaio aberto do trabalho TRINCA, de composição dramatúrgica de Amanda Bixo e direção de Yan Soa e Venu. Trabalho em dança, que também é performance, instalação e desejo. Aqui, tento traçar algumas ideias que me surgem no visionamento sobre a operação de justaposições de dicotomias presentes no trabalho. Um jogo de mostrar e esconder, de lacunas a serem preenchidas pela curiosidade e pelo pulsar desejante de adentrar onde algo nos diz não podermos.
- A materialidade que se reestrutura diante dos olhos.
- O vestido de menina moça no limite entre o que se pode e o que se quer. Desejar a inocência, se constranger com o desejo que se realiza. Se acanhar com um desejo partilhado.
- Você me prende sem nem saber que eu adoro um bondage.
- Não apenas coniventes, como cúmplices.
- O público de fora participa de dentro da operação pelo sentimento de estranhamento de participar. Estranhamento esse que está na fronteira do desejo desviante.
- Eu não sabia que eu queria isso, mas você foi lá e quis também. Queremos juntas (?)
- Eu não sei se posso te desejar
- como se já não estivesse
- como se fosse eu quem decidisse
- como se você também já não soubesse
- Escrever sobre o desejo não é tarefa fácil, mas desejar é menos ainda.
- A mulher
- Não pode abrir a perna;
- Não pode mostrar as ceroulas;
- Não pode emaranhar o vestido;
- A performer/dançarina
- Quer fechar as pernas;
- Quer esconder as ceroulas;
- Quer emaranhar o vestido;
- As mulheres
- Louise Bourgeois
- Hilda Hilst
- Dolores
- Bixo

Mesinha Brasil
por Renan Eduardo
Gosto muito do Tiny Desk. Sempre gostei. Já fui de acompanhá-lo mais de perto, ainda que tenha pouco interesse nos últimos tempos. Sem culpa nisso. Acho a proposta de gravar um breve show acústico num espaço privado, com artistas em sua maioria pouco conhecidos, um acerto dos grandes. É quase um projeto político de cultura: a NPR Music, sendo uma organização de mídia pública dos Estados Unidos (evidentemente com suas implicações de mercado), apresenta um conceito editorial — curatorial em termos mais contemporâneos — focado em autores emergentes, marcado por suas devidas exceções, para um público fiel ao seu catálogo. Quando o projeto veio ao Brasil, confesso que, de forma ingênua, me empolguei bastante com o Tiny Desk Brasil (uma oportunidade perdida é não ter se chamado Mesinha Brasil). Não que eu desgoste do conteúdo produzido aqui, muito pelo contrário, mas acreditava que seria uma oportunidade ímpar de conhecer novos artistas e bandas brasileiras emergentes com caráter de invenção em sua música. No entanto, sinto que o conceito editorial-curatorial da versão brasileira é um tanto quanto preguiçoso. Vejam bem, a proposta de um programa que tem um público que confia em suas escolhas editoriais, de apresentar artistas emergentes, não é bem o que tem sido feito por aqui. Depois de alguns meses de funcionamento, tenho a impressão de que o projeto, em termos de conceito editorial, se assemelha mais ao Acústico MTV, do que ao Tiny Desk “original”. Com exceção de alguns episódios, como o do Negro Leo + Metá Metá (que são artistas mais do midstream do que do underground), o programa brasileiro parece muito mais dobrado ao mercado e ao conceito de “brasilidade”, que está em alta e é altamente rentável, do que disposto a arriscar colocar uma banda como Pelados para se apresentar por vinte minutos. Nesse sentido, o Brasil Grime Show é muito mais preciso editorialmente, ao encontrar um equilíbrio entre apresentar novos artistas ao seu público e oferecer um espaço de improvisação renovado para autores já conhecidos, como foi o episódio com MC Carol e MC Gorila. O programa, marcado pela improvisação sobre um beat que o intérprete não conhece previamente e precisa adequar seu flow para tal, também abraça uma dose de risco ao apostar em vozes emergentes do hip-hop, algo que o ambiente controlado do Tiny Desk Brasil não tem conseguido fazer, nem que seja um pouquinho.

