Previsão do Tempo/Setembro de 2025

Os tempos chuvosos de setembro envolvem angústias e inquietações nos parágrafos desta edição da Previsão do Tempo. Ana Júlia Silvino abraça as múltiplas possibilidades de encontro da música, com uma playlist composta por interlúdios, músicas ambiente, hip-hop experimental, entre outras sonoridades que se aproximam e se afastam, com participações de Solange, Flying Lotus, African-American Sound Recordings e Liv.e. Helena Elias discorre sobre o endereçamento das imagens nos dias de hoje em diálogo com os trabalhos do escritor e cineasta Arthur Omar. Luiz Fernando Coutinho escreve uma carta para Duda Gambogi à respeito de uma exibição de seu filme, Babilônia e Renan Eduardo reflete sobre sua prática de escrita.

Boa leitura!

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por Ana Júlia Silvino

Há dias em que o pensamento sopra disperso e indomável. Quando as palavras não se deixam agarrar, talvez seja preciso começar com as dos outros: recolher fragmentos e deixar que ressoem, que se misturem ao nosso silêncio. Pra em fim reivindicar algo alheio como próprio. Sou feliz de saber que as palavras, ao contrário da música, não são propriedades.

pensar com as palavras de uma língua sem gramática

por Helena Elias

Que as imagens sejam uma forma de pensamento pode nos parecer claro. Mas quem seria  “nós”? Nós críticos de cinema? Nós leitores? Nós que vivemos nessa busca compulsiva por imagens? Contemporaneamente, o eu como “sujeito especulativo absoluto” parece não ter mais lugar. Por isso “nós” consistiria necessariamente em uma conjunção temporal de uma pluralidade de “eus”. Recomecemos: além daqueles que vêem na imagem uma forma de pensamento, há aqueles outros que vêem na imagem a epítome da recusa ao pensamento. A imagem seria insubordinável, sua dimensão sensível nos encaminharia a uma outra experiência, sempre aquém ou além do pensamento. Haveria uma outra via? Tendo a achar, por vezes, que não. Mas quando lembro do trabalho de Arthur Omar, me contradigo. Pense em seu texto A fuga atrás da orelha (1995): ali, o sample é tido como a unidade mínima de relação com o mundo, é o modo, enfim, de colecioná-lo: “Você desperta, sentindo o desejo de usar aquilo numa música só sua.” E a música para Omar é o tecido sonoro que tudo reveste, qualquer ruído pode vir a integrar uma coleção pessoal. Ao mesmo tempo que o sampleamento exige “operações de captura e predação”, ele não opera a partir da noção de propriedade: “Não há juiz, nem há crime. O único pecado é ter perdido o som que não volta mais.” Agora, lembre de algum de seus filmes, talvez de seu gesto primitivo: Congo (1972). Com o curta, Omar quer voltar ao átomo da imagem. Decompor, para melhor dizer, convulsionar o tratado documental. Ao espectador – já costumeiramente passivo à homologia entre documentário e espetáculo –, emerge a tarefa de pensar com as palavras de uma língua sem gramática. De juntar aqueles cacos de expressões, aqueles ruídos sobrepostos a sons orquestrais. Uma imagem ou outra sem referente. Uma dança promíscua entre pensamento e impensado. Cachorros transando. 

Até a luz pedir pra parar (uma mensagem a Duda Gambogi)

por Luiz Fernando Coutinho

DG, (re)assistir ao seu filme no cinema foi bastante especial. É claro que, por si mesmas, a tela grande e a escuridão da sala nos permitem o mergulho sensorial que o tema de seu filme pede (fico pensando, aliás, se toda sala de cinema não é, a su manera, um clube noturno). Mas Babilônia me alcançou, desta vez, como um filme sobre a luz: a luz que se põe nas primeiras imagens e que renasce no dia seguinte; a luz que falta no meio do espetáculo drag; a luz da lua que vem banhar a performance de sua personagem, Elizabeth de Victória. (Nesta sequência final, há inclusive outra luz, distante, chaplinesca, que parece cruzar os caminhos desta que transformou o quintal em palco). Quando os refletores do show se apagam e subitamente o público do “Babilônia” se vê à mercê do escuro, o que é bonito é que as sombras não afugentam ninguém – inclusive o público de Babilônia, que também espera, na escuridão da sala, pelo retorno do espetáculo. (Também penso o seguinte: não é curioso que uma das personagens caçoe da drag mais velha dizendo que a primeira apresentação desta señora foi no ano de 1895, quando o cinema, como sabemos, iniciou sua jornada dentro dos vaudevilles e dos bas-fonds, dos circos e dos espetáculos de feira, enfim: das casas noturnas? la boucle est bouclée, diriam os franceses). Nessa escuridão que te oferecem, você tateia, mãos e escuta atentas. Você não pousa no planeta Babilônia armada com um discurso sociológico ou uma estética impositiva, mas com a humildade e a generosidade que lhe são tão próprias. (Em junho, nesta mesma coluna, chamei esta generosidade de dúvida, e penso agora se não é o caso de lembrar que, bem, duda es tu nombre). Assim como você, Elizabeth de Victória também tateia seu lugar naquele ambiente em que a hostilidade se confunde com a ternura. No final do filme, o que emociona é que sua hesitação e a dela se dissipam na força da interpretação de “Ojalá”. Este desfecho cósmico é o que me conduziu, finalmente, aos versos de Chacal que, hoje, me fazem pensar em você: “vai ter uma festa / que eu vou dançar / até o sapato pedir pra parar. / aí eu paro, tiro o sapato / e danço o resto da vida”. Un abrazo desde Belo Horizonte. 


Confissão de um crítico

por Renan Eduardo

Gosto muito de escrever crítica, mas não tenho publicado tanto quanto gostaria neste ano, com inúmeras curadorias, muitos festivais, trabalho sem fim e, somado a tudo isso, a escrita da minha dissertação que está finalmente em vias de terminar; faço esta breve confissão para dizer que: toda vez que vou escrever um texto crítico, lido com a mesma sensação de que desaprendi a fazer crítica, não sei se por estar tomado pelo texto acadêmico — que carrega suas particularidades de escrita e amarras —, mas, nas últimas vezes que publiquei, senti-me diante de um abismo, completamente desamparado, com a mesma sensação de anos atrás, quando comecei a escrever: aquele enorme e sonoro como é que faz isso? A sensação de impotência diante do texto e do meu próprio pensamento, na verdade, já não me assombra, e sinto como se estivesse escrevendo crítica pela primeira vez, uma angústia quase infantil de lidar com o não saber, de estar aprendendo algo do zero. Ainda assim, gosto disso, gosto de sentir que estou mergulhando em águas turvas, nadando num rio barrento que não consigo ver o fundo, pois é preciso deixar-se levar pela correnteza, ter fé cega no próprio pensamento, deixar a mão escrever por si, confiar na intuição. Passados alguns, não muitos, anos escrevendo e editando textos, sinto cada vez mais que a questão central na crítica de arte, não só de cinema, está profundamente ligada à forma do texto, ao apego do autor pelas palavras, ao modo como fala ou deixa de falar, pois boas ideias e uma boa perspectiva sobre o filme exigem, sim, certa sensibilidade, mas o modo como se transmite essa ideia, a maneira como se passa a visão, é o que tem me aguçado enquanto leitor. Se a crítica que se preza reforça constantemente o pensamento de não separar o conteúdo da forma, por que não transpor essa práxis para a escrita de nossos textos? Tenho a ligeira impressão que confiar na própria mão, lançar-se ao rio, liberta o autor de algumas convenções da crítica, é como ser eternamente um aluno, retorno à condição de ignorante. Eis, então, que assim escrevo os textos que tenho chamado de crítica.

Autores

  • Revista Descompasso

    A Descompasso foi criada em agosto de 2023 com o objetivo de ser um veículo independente de exercício, prática e expressão da escrita crítica sobre o cinema, a música e outras manifestações artísticas.

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  • Ana Júlia Silvino

    Crítica de cinema e pesquisadora.

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  • Helena Elias

    Helena Elias é mestranda na linha de Filosofia Contemporânea pela UFMG. Escreve crítica de cinema e compõe o Cineclube Comum.

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  • Doutorando em Comunicação Social no PPGCOM-UFMG. Edita a Revista Madonna e colabora com a LIMITE – Revista de Ensaios e Crítica de Arte. Também atua como tradutor para o Vestido sem costura – blog de cinema.

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  • Renan Eduardo

    Renan Eduardo é mestrando em Comunicação Social pela UFMG e editor da Revista Descompasso. Integrou o Júri Jovem da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes e o Talents Rio Crítica 2024. Foi curador do estande “Mil e uma quebradas: o Capão Redondo sob as poéticas de Lincoln Péricles (LKT)” para a plataforma Spcine Play e assistente de curadoria no 11º Cinecipó – Festival do Filme Insurgente. Integra a Comissão de Seleção Nacional do FestCurtasBH desde 2024, é curador no II Festival de Cinema de Diamantina, na VIII Mostra de Cinema do Sesc e participa do grupo de pesquisa “Poéticas da Experiência” (PPGCOM-UFMG).

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