Last Updated on: 22nd setembro 2023, 05:31 pm
Conversa sobre ‘Singela Homenagem aos Mamutinhos no Dia das Crianças em Alto Mar’
Participaram da conversa Clara Pellegrini e Rodrigo Sampaio, sem identificação específica no texto.
Link para o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=Le3siagR4Cw&t=7s
– O Mamute Véio faz Singela Homenagem aos Mamutinhos do Mundo todo é a frase que tá na descrição do vídeo. Esse vlog de dentro da jangada do pescador-cantor parece ter uma vontade muito grande de mostrar e compartilhar. Singela, como diz a frase aí de cima. A câmera do celular tenta capturar por aproximação as texturas e peculiaridades de cada peixe, como se aquilo fosse matéria de um encanto especial. O início do vídeo já é assim: começar a filmar o peixe se debatendo porque Alexandre, o youtuber, acha um momento bonito. A duração mais longa desse plano e o ângulo mais aberto da lente do celular dão conta de um monte de gerûndios naquele ambiente, para além dos animais. São as infinitas ondas se desenhando, a bandeira tremulando com a logo dos Mamutes, o céu ficando nublado e o inconstante reflexo do sol no mar, tudo isso narrado com uma disposição muito festiva.
– Também gosto de pensar no filme como esse vlog de dentro da jangada porque sinto que ele encapsula muito bem a sensação de estar no mar, ao sabor do vento e das ondas, e até mesmo algo de estar pescando dentro de um barco. O vídeo é em si bastante oscilatório e até meio frenético, tem bem marcado ali um ritmo acelerado. O tempo todo muda-se o ângulo da câmera, o enquadramento, a luz repetidamente estoura e depois regulariza, o foco sempre irresoluto e desobediente… é como se as imagens incorporassem esse balanço do barco no mar e o ritmo acelerado da pescaria, no sentido das aparições rápidas e incalculadas de peixes diferentes, uma atenção ativa.
Acho também que muito disso se deve à câmera subjetiva quase onipresente que coloca a gente na posição, física mesmo, do Alexandre Lins enquanto ele vive e filma aquilo. Existe uma abertura pro acaso, pro inesperado/incerto, pro que tá fora de controle que, com certeza, existe também na experiência da pesca.
– Sim, esse “mostrar” é apresentar o trabalho deles isolados no alto mar. A brisa é forte e o horizonte é aquela linha azul bêbada que nunca termina. Adentrar aquela embarcação é ouvir sem necessariamente entender tudo que Alexandre fala, se deparar com uma moréia nos pés e ficar enjoado com o balanço de tudo. A imersão que anda junto de uma espontaneidade na filmagem parece ainda cruzar com uma opacidade inerente. Acho que tanto o ritmo da montagem picotada – que dá uma forma inapreensível ou pelo menos inquieta àquele passeio, sem muito tempo ou preparo para quem vê se situar no espaço das cenas – quanto a própria fala de Alexandre, que conversa ao mesmo tempo com os peixes e com os espectadores, tudo com um vocabulário bem próprio, colaboram pra esse distanciamento. É como se estruturasse um diário de bordo em vídeo, que como cê disse nos convoca praquela experiência marítima, mas que mesmo assim, em aproximação ao mundo dos peixes, é coberto por um tipo de muco pegajoso em sua superfície, um encontro escorregadio cuja assimilação de tudo torna-se missão impraticável.
A trilha sonora me chamou muito a atenção, se vamos de encontro ao trabalho de pesca também ouvimos o brega dele, com nome do álbum e tudo. O negócio é tão forte que vira imagem no canto da tela, vizinha dos peixes mais loucos. A faixa da música tá sobreposta ao áudio do celular. Esse imbricamento é bem particular, nenhuma das duas é totalmente audível ou separável.
– Isso aí é o que me pegou mais forte no que o pescador cantor faz, porque existe um hibridismo muito louco entre esse vlog de pesca e um clipe mesmo, da música que tá ali como uma espécie de trilha sonora. Essas informações no canto da tela dão pras imagens uma estética meio distorcida de videoclipe à la MTV. E um clipe, ainda que não seja só isso, acaba sendo sempre um tipo de propaganda do trabalho do cantor. A mesma música ficar tocando ali inúmeras vezes é outro ponto que reforça pra mim essa ideia de um intuito de divulgação, claramente tão forte quanto essa vontade de vloguear a pesca: o efeito chiclete torna essa trilha musical muito mais marcante do que seria sem a repetição, fixa mesmo na cabeça de quem assiste. Só que aí também o filme serve de clipe não da música propriamente dita mas do looping dela… Acho esse vídeo-híbrido absolutamente idiossincrático e inesperado.
E isso se alicerça muito também na maneira como as duas faixas sonoras estão postas ali – completamente indiscerníveis e inseparáveis mesmo, como cê falou. Há uma disputa constante entre a música e o áudio captado pelo celular por uma certa hierarquia de compreensão e importância, como se competissem por uma posição de maior pregnância naquele universo. Mas esse conflito não se resolve pela sobreposição – seja em volume ou grau de percepção – de uma sobre a outra; ao invés disso, elas acabam por se unir em um novo elemento, heterogêneo e harmonioso (à sua própria maneira). E o regime imagético do filme é contaminado pela mesma forma de organização, regido pela disputa constante e irresoluta da infinidade de elementos que ascendem em tela, também nessa harmonia particular que parece dificilmente brotar em outros contextos. Acaba que o vídeo é essa mistura completamente ambivalente, e faz total sentido porque de um jeito muito massa agrega em um essas duas coisas (aparentemente bem distantes) que o Alexandre é: pescador e cantor.
– O vídeo terminar da forma que termina me traz algumas questões em relação à montagem que acho massa elaborar também. Aparentemente sem preparação, o vídeo se encerra com mais um peixe filmado por Alexandre e com a música que tocava sendo interrompida no meio. Um fim meio desajustado que boto fé que só existe porque é sintoma da organização dessa montagem um tanto quanto fenomenológica, que prioriza os encontros com os bichos marinhos como evento principal e é pautada para que cada peculiaridade dessas interações surja em quadro. Só nesse vídeo ele interage com pelo menos uma dezena de peixes das mais variadas cores e formas. Lá pros 4 minutos de vídeo tem um peixe insistente que o mamute só pega depois de um minuto inteiro tentando. Esse peixe fujão recebe mais duração de tela pois merece o tempo para se rebelar, se acalmar e por fim ser domado por Alexandre. Já as cenas com o filhote de lagosta ou o peixe chifrudo, por exemplo, devem durar tempo suficiente – menos tempo nesses casos – para que a curiosidade de seus atributos não se esgarce em um plano que dure demais. Daí surge um final que toma conta do vídeo quando não há mais o encanto necessário para que ele exista, ou seja, quando não há novos seres para se apontar a câmera.
– É, na moral… tem um respeito naquelas interações. Trazer o peixe pra tão perto ou filmar o caminho dele voltando pro mar depois da captura são praticamente premissas éticas numa gravação dessas. É quase um dossiê ou um catálogo de um livro de biologia em vídeo, se debatendo, diretamente daquela caixa de Pandora dos Mamutes. Frequentemente rola um movimento do Alexandre com a mão de trazer de baixo pra cima e de fora pra dentro do quadro o animal, como se fosse uma fugaz preciosidade, merecedora de ocupar o plano de perto. Mandar um salve pros inscritos, citando nome e cidade de onde eles são, enquanto o peixe tá mandando beijinho pra câmera é desses momentos raros até na imensidão do youtube. E nominar o canal de Mamute, fazer disso um apelido, também é instigante como aproximação ao mundo animal.
– Mas ao mesmo tempo, com essa coisa do Mamute, rola também uma aproximação com as pessoas que assistem aos vídeos. Porque ele se identifica/nomina assim e faz o mesmo com quem assiste – é como se fazer parte da “Mamutada” fosse uma condição inerente ao espectador, independente de ser alguém recém-chegado a esse coletivo ou que já acompanha assiduamente, familiarizado com esse universo que tem um funcionamento muito próprio e é composto por elementos muito característicos. É quase a dinâmica de um ecossistema mesmo, no qual essas diferentes partículas interagem em uma relação caótica de equilíbrio estável dentro de parâmetros auto-estabelecidos: a multiplicidade de animais marinhos, a pesca e a filmagem dela, o modo de falar do Alexandre – expressões marcadamente repetidas a ponto de tornarem-se bordões, esse léxico particular – o ritmo/velocidade e os gestos muito próprios, a fartura de estímulos simultâneos, as músicas do CD de brega do pescador cantor, a forma como ele interage com os peixes, o salve onipresente pros inscritos… E essa última coisa acaba sendo ao mesmo tempo índice e alimentador desse coletivo que ele e seu trabalho alicerçam. Do mesmo jeito que existe um respeito e uma familiaridade com os animais e o mar, também existe com o público. Esse gesto com remetente e destinatário tão bem localizados (nessa ótica o filme vira quase um vídeo-carta, endereçado) é uma maneira de dar e receber, uma forma de devolver algo pra quem valoriza o que ele produz; uma troca mesmo.
– Agora, essa coisa da premissa ética que surgiu aí eu acho mais complexa de se pensar. Porque se a gente for olhar pelo lado literal, o cara tá ali deixando os bichos se debaterem de fora d’agua enquanto ele filma. O pescador cantor criou até uma onomatopeia própria – ébem – pra dublar o que esses peixes dizem enquanto sufocam, abrindo e fechando a boca insistentemente à procura da água que não virá; e ele repete isso o tempo todo, virou um bordão, uma das partículas que constituem esse ecossistema.
Seguindo na ideia de traçar um paralelo entre esses dois grandes pólos relacionais (os animais e as pessoas), existe sim uma intimidade muito grande entre o Alexandre e os bichos marinhos todos que ele pesca – mas não é uma relação positivamente recíproca como é a com os inscritos. Inegavelmente existe também uma troca aí, embora essa seja bem mais desigual, injusta, violenta: os bichos dão a vida pro Alexandre ter o sustento (tanto financeiro quanto material dessa produção artística).
– De fato, a discussão ética nesse sentido é bem maior. Bom enfatizar que estamos falando de um pescador, o trabalho dele é vender peixe morto. Fiquei pensando na cena do peixe fujão que citei antes. É um plano longo do Alexandre tentando controlar o bicho liso e rebelde. A mão direita que ergue o celular faz sombra na mão esquerda que tenta capturar o animal no convés. Ele poderia parar de filmar pra facilitar a captura, mas grava tudo e até fica em silêncio por uns instantes, concentrado, momento raro no vídeo. Realmente fiquei confuso nesse trecho, talvez por embaralhar a ideia sobre o tempo de exposição fenomenológica, porque aqui o avanço do tempo e os desdobramentos em quadro também vão reduzindo a graça da situação e deixando em evidência o lado cruel da parada. Mas inegavelmente, enquanto resultado filmado, outras questões de ordem ética podem vir e provocar dúvidas sobre seus vídeos. Me vêm à tona agora essas brechas entre a autoridade do humano sobre o animal e ainda sim o afeto que tá muito em vigor no vídeo. Sinceramente, eu acho um barato, e que vai muito além de ser só um ponto de vista poucas vezes explícito dentro do cinema brasileiro: um pescador cineasta que filma em câmera subjetiva. Difícil ver tanta contaminação do sujeito que filma dentro de um vídeo; as suas duas profissões estão lá, o sotaque e a narração também. Seu corpo de fragmentada aparição se faz presente justamente no contato, com seu companheiro Renan e os seres marinhos na pesca e com os Mamutes que assistem aos vídeos. Foi uma fala bem impactada kkkkkk mas realmente acho demais o canal.
– Isso que eu falei da questão ética ser mais espinhosa do que parecia a princípio de forma alguma rejeita o que o pescador cantor faz, também acho hipnotizante de legal; só achei importante apontar outros caminhos, pontuar essas outras coisas que me vieram. É realmente bem difícil saber como se posicionar frente a isso tudo, e me parece que esse dilema ético tem mais de uma linha de força, porque é como se a gente tivesse falando de tipos diferentes de ética quase – que são afetados um pelo outro quando se interseccionam. Existe toda uma gama de questões dessa natureza que tão essencialmente implicadas na atividade pesqueira. Uma série de premissas que atravessam a relação do Alexandre-pescador com os animais (apesar do carinho visível com os bichos eles ainda assim são fonte de alimento e sustento) e que são paralelas, quase inteiramente separadas, aos pressupostos de uma ética da filmagem – que dizem respeito ao Alexandre-youtuber. O que acontece aqui é o choque entre essas duas categorias distintas, então aproximadas e emaranhadas pela inclusão de um novo elemento: a câmera. A presença dela na dinâmica modifica a ordem e faz surgir novos pontos de fuga e tensão, aumenta a densidade do debate ético… É como se a coisa ficasse mais escorregadia ainda kkkkk.
– Louco isso do quanto o filme fica com a gente depois que acaba, tanto a música grudada na cabeça quanto a dimensão e a turvação do mergulho que a gente acabou de fazer… Chama na Calanga!