Abismos insondáveis dos pampas: sobre ‘Trenque Lauquen’ (Laura Citarella, 2023)

Last Updated on: 21st setembro 2023, 10:51 am

Laura está desaparecida. Ezequiel, amigo e amante, e Rafael, o marido, saem a procura dela pela cidade de Trenque Lauquen e pelas regiões vizinhas da província de Buenos Aires. A busca desemboca em histórias sobre o passado de Laura e da cidade através de múltiplos relatos que eventualmente abrem espaço para outros relatos. A região, seus moradores e Laura, uma figura fantasmagórica, passam a revelar abismos narrativos e territórios abertos ao misticismo.

Trenque Lauquen (Laura Citarella, 2023) parece ter algumas linhas de raciocínio em comum com La Flor (Mariano Llinás, 2018), talvez o trabalho mais notório do coletivo El Pampero Cine, relativo ao prazer no ato de narrar em si mesmo. No entanto, algumas diferenças chave expõem o caráter singular do misticismo de Laura Citarella e sua abordagem diante dos esquemas ficcionais. No filme de Mariano Llinás, o conjunto e a ordem dos episódios narrativos conferiam uma noção de sentido e resolução, ainda que os fragmentos por si mesmos não poderiam dar conta do recado. A metáfora titular conferia satisfação pela ordem estrutural, era possível esquadrinhar os contornos de sentido do projeto pela sua organização. No filme de Citarella, a ficção e o seu processo mistificador são vistos como algo em aberto que não só irresoluto ou indeterminado, mas inacabado, com lacunas que não são preenchidas. Se Llinás oferecia uma sombra de catarse pelo conjunto delineado, Citarella parece se aproximar do apelo da ficção de outra maneira, mais aberta e mais frustrante.

Trenque Lauquen é essencialmente uma revisão poética da ficção de mistério e de detetives. Citarella entra nesse campo de ficção revisionista depois que ele já foi extensivamente balizado durante os últimos cinquenta anos e, à maneira de alguns dos melhores artistas dentro dele, encara esse repertório com um interesse menos genealógico e referencial do que epistemológico. Ela não parte de um jogo de iconografias familiares, mas dos instintos que motivam a fabricação das imagens dentro do gênero e os entraves que surgem durante o processo. A ficção de mistério, ao pôr a razão e os meios de conhecimento no centro da mesa, tradicionalmente responde a anseios modernos por excelência. Quando a possibilidade de conhecimento começa a ser constantemente abalada, os detetives são tragados pela crise. O mundo de Citarella não oferece todas as evidências necessárias para a solução de seus dramas. Estamos, como seus personagens, a coletar os retalhos do passado, de um mundo que já não existe mais e que agora se revela mais caleidoscópico do que os certos mitos basilares da modernidade, os da decodificação racional e ordenada do mundo, poderiam supor.

Nisso é preciso destacar alguns elementos do filme antes dele começar a engendrar uma narrativa dentro da outra. As narrativas e as fabulações que partem do drama inicial, o do desaparecimento de Laura, são postas em ação com elementos que aparecem para o público conforme os personagens os descobrem, como a carta no parabrisas avistada por Ezequiel. A ênfase na noção de presença cênica confere o teor imediatista desses eventos e aparições, uma questão de realismo. Os códigos de encenação de Citarella ainda constituem na maior parte do tempo um estilo mais apolíneo, que busca uma harmonia dramatúrgica relativamente discreta entre as partes e pouco afeito ao virtuosismo técnico. Porém, o que se vê em Trenque Lauquen é a crise desse código não só pelas evidências insuficientes, mas pelo uso consistente das técnicas de encenação ao longo de seu abismo narrativo.

Frames de Trenque Lauquen

As imagens dessa ficção, ainda que com suas bases realistas, expressam esse desejo de mistificar o mundo à medida em que o descobre continuamente e sem um fim à vista. O sentido estaria então para ser encontrado em outro lugar, talvez fora do filme. O fato de Trenque Lauquen ser a cidade natal de Citarella, e dos nomes dos personagens serem também os primeiros nomes de seus respectivos atores, reforça a condição do filme como extensão fantástica da realidade. Trenque Lauquen se debruça sobre essas localidades e, depois de conferir o olhar ficcionalizante e mistificador, projeta as possibilidades de sentido para o mundo real; depois de encerrado o filme ele está pronto para ser redescoberto.

A cidade e a região dos pampas argentinos se “transmutam” com o olhar da ficção. A imagem de cidade interiorana e pacata é substituída pela imagem de um lugar fantástico com história e folclore próprios. Vários espaços tornam-se icônicos e memoráveis. A lagoa, a torre d’água, a cafeteria, a biblioteca, a estação de rádio, o posto de gasolina, todos ganham uma personalidade própria, um novo status. Ela filma cada um desses lugares como se os prestigiasse com o registro. Ao inseri-los dentro de sua cosmologia ela lhes confere um senso de importância dentro da vida cotidiana e além de suas impressões superficiais1. À maneira de Jacques Rivette (talvez o cineasta mais propício a ser evocado quando se fala deste filme), o jogo ficcional de Citarella envolve uma sensibilidade topográfica fantástica e também com uma propensão ao místico e ao conspiratório. Existe terreno para cobrir e as regras do jogo nem sempre se fazem claras.

Mas para instigar esse prazer imediatista e a curiosidade pelo que está além dos planos, Citarella parece recorrer a um impedimento à fruição plena da fantasia. Ao deixar certas coisas em aberto, evitando a catarse fantástica, Trenque Lauquen então pode se ocupar inteiramente de personagens narrando e tentando fazer sentido daquele universo sem a perspectiva de resolução. Para os propósitos poéticos do filme, essas ações dos personagens existem apenas por elas mesmas. As atitudes de narrar e de inquirir, que se estendem com plena convicção durante quatro horas, importam mais do que suas possíveis consequências catárticas. A estrutura capitular do filme, juntamente com a narração e na descrição oral dos acontecimentos, consolida o caráter fundamentalmente literário do filme e a força que a palavra detém. É justamente por essa predominância da palavra que determinados momentos de silêncio e mutismo se destacam do seio do filme, irrompem como situações limite e de falha.

Em dois momentos chave ocorrem essas rupturas. Depois de procurar por Laura em uma cidade vizinha junto do marido desta, Rafael, Ezequiel pega o carro e volta para Trenque Lauquen. Dentro do carro, vê-se um plano de Rafael ao volante com uma expressão apática e frustrada e lentamente a câmera se movimenta para mostrar a visão da estrada adiante; fim do capítulo. É um raro momento onde a planificação não responde a uma motivação dramática. Uma operação formal simbólica ainda mais forte só se verá no final, com uma estilização notável do enquadramento e com um mutismo ainda mais delongado. A ausência da palavra nestes momentos limites nos confronta com a questão do inefável, da falha do narrar diante do mistério do mundo.

Citarella, assim como Llinás, traz consigo os estilhaços do mundo moderno, ela parece se deter sobre o espírito obsessivo que descreve a modernidade e seus artistas com uma certa melancolia romântica; o olhar inquisitivo e voraz sobre os problemas da representação e a ânsia de alargar a compreensão sobre o mundo uma hora há de ceder aos entraves. O percurso posto por Citarella sugere que o desejo insaciável de continuar uma hora cede lugar à contemplação do desconhecido, não por fraqueza de espírito, mas pela força dos objetos e sujeitos do mistério. Laura, as histórias da lagoa, as correspondências na biblioteca, todos eles se elevam de seus aspectos superficiais e cotidianos com o custo de nunca mais serem compreendidos.

Filme visto em Belo Horizonte no Indie Festival 2023.

  1.  Parte considerável do apelo à sugestão e das capacidades criativas do filme com suas locações e atores também se deve ao esquema de produção extremamente enxuto do El Pampero Cine. O coletivo notoriamente não utiliza recursos do INCAA no financiamento de seus filmes. ↩︎

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