Last Updated on: 19th janeiro 2024, 06:27 pm
Rewind & Play (2022) é um trabalho de levar ao público imagens inéditas de Thelonious Monk gravadas em um programa de televisão francês durante sua turnê europeia em dezembro de 1969. O diretor e editor Alain Gomis intervém e reconfigura o material na montagem de modo a pôr em evidência o profundo abismo instaurado entre Monk e o entrevistador. Em seu prólogo, Rewind & Play se concentra em uma cena na qual o pianista Thelonious Monk está sentado diante do piano e do entrevistador Henri Renaud. O entrevistador fala ora em inglês, ora em francês (idioma que o músico não parece dominar) e narra, para a câmera, parte da trajetória do jazzista como se Monk não estivesse diante dele. No decorrer da sequência, a voz do entrevistador se dissipa e um close no rosto suado de Monk acompanhado de uma respiração pesada toma conta da cena e do quadro.
Desde os primeiros momentos do longa, a montagem destaca que é impossível identificar qualquer fio comunicativo claro entre os dois personagens. Há uma tensão que põe em xeque o formato de entrevista roteirizada, concebida já com ideias preliminares que aniquilam qualquer espaço para a espontaneidade e a organicidade. A câmera capta o jazzista em ação, circundando todo o piano até retornar às suas mãos, ponto de origem do take e, no movimento, nos dá a ver a postura desinteressada dos executivos do canal que fumam e conversam enquanto Monk toca sua música para o vento. Thelonious encontra-se ilhado e forçado a repetir respostas e músicas até que esses homens sintam-se satisfeitos.
Para além do piano que distancia fisicamente Monk e Renaud, logo de cara, Alain Gomis já apresenta uma série de barreiras intransponíveis que atravessam toda a entrevista: o idioma, o espaço, a conversa e a cultura. Vemos então os primeiros indícios da incômoda experiência do pianista que o longa-metragem revisita e busca traduzir sensorialmente para o espectador. As operações de montagem, por sua vez, atuam de modo a intensificar o desconforto que transpira nessa entrevista. Não há uma continuidade clara entre as perguntas, as respostas e os números musicais. Trata-se de um permanente conflito de discursos traduzido em sequências desconexas e elevado às últimas consequências. O filme, portanto, ressalta tal desconexão retorcendo a temporalidade das imagens do arquivo, opondo o interrogatório improdutivo ao qual Monk é submetido a cenas do pianista apenas tocando (essas, sim, com traços da espontaneidade pretendida, ainda que maculadas pela fisicalidade evidentemente prejudicada de Thelonious – as gotas de suor caem em profusão e molham todo o rosto dele).
Há, ainda, o fator da incorporação das falhas dessas imagens. A estática e a dessincronia entre som e imagem fazem parte da tradução visual/sensorial/imagética do título em si: retroceder e tocar. Se pensarmos no que faz a comunicação humana ser eficiente – segundo o teórico Michel Chion, a compreensão do significado dos sons emitidos pela voz do interlocutor –, ela possui duas dimensões: a voz em si e a significação dos sons que ela emite. O material gravado não parece conter nenhuma dessas dimensões em sua totalidade. O entrevistador tenta lançar iscas para arrancar aspas que julga “interessantes” ou “relevantes” de Monk, mas as barreiras que separam os dois homens já estão consistentemente firmes e, portanto, torna-se impossível estabelecer qualquer conexão entre um e outro. “É tudo o que posso dizer” e um desconfortável sorriso, meio desdenhoso é a reação recorrente de Monk às investidas do âncora. Isso se repete de formas consecutivas – daí, de novo, o movimento de retroceder e tocar. O rewind (tanto o adicionado pela montagem, quanto a reiteração incessante de perguntas por Renaud) mata a espontaneidade. A montagem do documentário reafirma esse “travamento” de forma gradual até, por fim, mesclar as falas de Renaud à música de Monk em sua totalidade para pontuar (com muita ironia) o absurdo de toda a ocasião.
Ao invés da clareza e da fluidez que se esperam de uma entrevista jornalística, Renaud sufoca a presença de Thelonious ao disparar uma série de informações e anedotas que não contemplam a relevância do pianista, apenas geram um ruído semântico que persiste irresolvido por todo o filme. Há, pelo menos, uma passagem marcante em que testemunhamos Monk tentando romper essa imobilidade verbal, quando ele é perguntado sobre o primeiro show que fizera em Paris, ainda nos anos 1940: “Eu fui o mais mal pago [dos instrumentistas].” É prontamente censurado. Não podemos usar isso, sr. Monk, “that’s not nice”, apague, editor, rewind, play. Monk se levanta, pronto para abandonar o set. Ouvimos apenas parte da discussão que se instaura, mas a mão dele afastando a mão do apresentador dos seus braços nos diz tudo. A censura, a não-entrevista, o jornalismo cultural negligenciando seu entrevistado para manter o status quo intacto – o mesmo status quo que o pianista contestou social e musicalmente por toda a carreira.
A montagem dá materialidade a essa crise permanente estabelecendo uma dimensão opositiva entre momentos cotidianos (o músico chegando a Paris, andando de carro e a pé pela cidade, fumando um cigarro acompanhado da esposa Nellie Monk) e os takes engessados da malfadada gravação. Alan Gomis lança mão da repetição como método para transmitir o permanente descompasso entre Renaud e Monk. As sequências se repetem, vem e vão, de modo a ecoar formalmente o “retorcer e tocar” das antigas fitas cassete (que também dialoga com a estética envelhecida das próprias imagens). Quando a música de Monk é sobreposta às falas mais constrangedoras do entrevistador (quase um alívio), é como se Alain Gomis dissesse a ele “cale a boca e ouça!”. Mas ele não ouve. Após toda dimensão verborrágica que percorre o longa, Gomis decide encerrar o filme com uma ausência de sons. Os closes nos rostos cansados de Renaud e Monk restam como último signo de um abismo silencioso que habitou entre os dois.