Atratividade magnética ou Ao Mestre Candeia

Last Updated on: 17th janeiro 2024, 04:29 pm

Uma luz de fim de tarde, suave e alaranjada, ilumina uma câmera na mão que se movimenta livremente em meio uma roda de samba regida pelo Mestre Candeia, cantor e compositor do Partido Alto, e captura uma hipnótica sequência da “expressão mais autêntica do samba”, como pontua o próprio Mestre. Acompanhada por um boom1, a imagem é sempre interpelada por esse dispositivo de captação de áudio que, assim como a câmera, se movimenta em direção a aquele que está cantando, dançando e tocando seu instrumento (ou tudo isso ao mesmo tempo) para registrar tal manifestação artística. A grosso modo, o filme se divide em dois blocos de aproximadamente 10 minutos, sendo o primeiro deles nomeado por um intertítulo de “Ao Mestre Candeia” e o segundo de “Na casa de Manacéa”. Em termos de estrutura, ambos os blocos em muito se parecem: abrem com um ou mais integrantes refletindo sobre a feitura e a materialidade musical do Partido, seguido de uma breve improvisação feita por aqueles membros, enquanto, pontualmente, Paulinho da Viola faz algumas considerações em voice over.

Ainda que na primeira grande sequência de imagens, a roda de samba e a câmera tenham Candeia como seu epicentro, há diversas outras presenças que atravessam o retrato do Mestre, de modo a provocar uma certa contaminação de outras figuras na imagem. A câmera que serpenteia junto ao sambista desprende-se dele para filmar todos os outros integrantes que estão ao seu redor, de modo a criar pequenos retratos de cada um desses corpos sem nome. Do mesmo modo que Candeia rege o partido e todos os músicos ali presentes – pandeiristas, pratistas, violistas, dançarinas e outros -, o Mestre também conduz com as mãos para onde Leon Hirszman e sua equipe devem direcionar a câmera e seus microfones. Nem que seja por alguns frames, cada um desses membros que compõem o partido são registrados performando seu instrumento em sua particularidade, ainda que junto a musicalidade do restante do grupo.

Frame de Partido Alto (Leon Hirszman, 1982)

Tais músicos tidos como “figurantes” do filme passam a interpelar esses dispositivos de filmagem olhando diretamente para a câmera, gesto não feito por Candeia, por exemplo; e se adentram ao plano “sem pedir licença” para deixar registrado, por alguns segundos, a sua ginga no centro da imagem. Ainda que o microfone fique sob domínio da equipe de filmagem, quase como uma maneira para que Hirszman mantenha-se em cena, apesar de estar por detrás das câmeras, (postura muito similar ao modo em que o cineasta filma Nelson Cavaquinho em 1969), alguns desses sambistas ainda desestabilizam esse recurso ao puxar o dispositivo para si e não apenas redirecionar o foco sonoro da cena, mas também sua dimensão imagética. 

Ao passo que esses retratos põem em evidência a performance individual de cada um dos músicos, a ginga desses corpos compõem a sinfonia de um retrato compartilhado desse grupo de pessoas que ali se reúnem para improvisar e curtir um samba. Cria-se, portanto, um jogo de improvisação entre quem anuncia o primeiro verso – geralmente Candeia – e quem o responde. “A arte mais pura é o jeito de cada um”, como pontua Paulinho da Viola ao final do filme, é interpelado por esses múltiplos retratos individuais e compartilhados que, improvisadamente, constroem o Partido Alto. O improviso ali criado não se dá apenas numa dimensão discursiva dita por Candeia e Paulinho da Viola, mas também opera sob uma atmosfera performática dos sambistas e até mesmo da equipe de Leon Hirszman que, ao seu modo, também participa da roda.

Frame de Partido Alto (Leon Hirszman, 1982)

Apesar de Candeia ter uma aparição de apenas 10 minutos, o Mestre do Partido Alto, ainda assim, dispõe de uma atração magnética em cena, uma força gravitacional que faz todo aquele círculo ter o compositor como o centro. Por diversas vezes a câmera sai de Candeia e passeia por outros cantos da roda, registra outras expressões desse partido, embora, ao final de cada livre movimentação, o retorno seja sempre a este ponto inicial. Sentado em uma cadeira de rodas cantando ou com um tambor em seu colo, o Mestre orquestra essa roda mesmo quando ele não está visível no plano. Seu modo de se colocar presente ainda que no fora de campo se assemelha à postura que Hirszman emerge em cena. Ao passo que o diretor utiliza de um dispositivo de gravação de som, Candeia projeta a sua voz do fora para o dentro de campo, de modo a também agir e ocupar o plano sobre esses outros sambistas que temporariamente tomam a imagem. Desse modo, cria-se uma noção expandida de campo, um antecampo2 em que não apenas os elementos internos à diegese participam da imagem, mas outros externos agem diretamente sobre os limites do visível. Leon e Candeia, portanto, são agentes que estão fora das lentes em imagem mas, ainda assim, são determinantes e responsáveis pelas imagens que vemos.

No final das contas, é como se Leon desejasse fazer um retrato compartilhado daqueles sambistas, mas a presença de Candeia nessa rota atraísse todos os dispositivos para ele. Ainda que a câmera registre outros músicos, há uma atratividade magnética no corpo de Candeia sempre traz de volta o maquinário para si. Candeia não apenas é presença e ausência na diegese interna da imagem, mas também em toda a sua aparição fílmica. Gravado em 1976 e montado em 1982, o Mestre Candeia faleceu dois anos após as filmagens de Leon Hirszman. Sua presença no filme não apenas cria uma fantasmagoria que já se anuncia ambiguamente no intertítulo inicial “Ao Mestre Candeia”, mas também deixa para sempre o seu registro, sua atratividade magnética impressa fotosensivelmente nos rolos de película de Leon Hirszman.

  1. Microfone direcional comumente utilizado no cinema e no audiovisual. ↩︎
  2.  Ver mais sobre o conceito de “antecampo” em BRASIL, André; BELISÁRIO, Bernard. Desmanchar o cinema: variações do fora-de-campo em filmes indígenas. Sociologia & Antropologia, v. 6, p. 601-634, 2016.
    ↩︎

Autor

  • Renan Eduardo

    Crítico de cinema e pesquisador. Bacharel em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas e mestrando em Comunicação Social pela UFMG. Atualmente, é editor e redator da Revista Descompasso.

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