Risco controlado, inocência preservada

Last Updated on: 13th março 2024, 05:33 pm

“É preciso mostrar o que não podemos ver quando mostrar não é falsear mas fazer surgir uma forma que pensa”
Georges Didi-Huberman – Imagens apesar de tudo

Se em História(s) do Cinema (1988-1998), Jean-Luc Godard atestava que as vítimas são filmadas de frente e os algozes de costas, não espanta que haja um conjunto de filmes contemporâneos (talvez até uma certa tendência cinematográfica pós-moderna) em que o clássico embate entre carrasco e mártir não mais existe. Ou melhor, se dissolveu. Obras em que há uma perspectiva unívoca sobre determinados eventos históricos têm se tornado cada vez mais comuns, ao passo que o espectador é privado do embate visual de plano-contraplano entre duas forças antagônicas ao final da narrativa. Como não lembrar, por exemplo, do embate mágico e quase surrealista entre Willard e Kurtz que encerra Apocalypse Now (Francis Ford Coppola, 1979)? Ou de Sally fugindo do Leatherface no porta-malas de uma caminhonete em O Massacre da Serra Elétrica (Tobe Hooper, 1974)? No final das contas, a questão é: o enfrentamento entre forças eterniza a possibilidade de transportar o conflito pelo tempo.

Seja no terror que foi elencado sob a nomenclatura de “pós-horror” (sobretudo nas obras da produtora A24) ou até mesmo em filmes de guerra recentes como Dunkirk (Christopher Nolan, 2017) e 1917 (Sam Mendes, 2019), o que está em jogo aqui é fundamentalmente uma recusa ao enfrentamento e, essencialmente, a negação visual do contracampo tanto para os personagens, quanto para o espectador. É nessa renúncia ao outro lado do visível que Zona de Interesse (Jonathan Glazer, 2023) opera seu estilo.

O filme conta com uma premissa suficientemente delirante: acompanhamos a rotina monótona de uma família alemã que divide muro com um campo de concentração nazista. Hedwig Hoss, personagem interpretada por Sandra Hüller, apresenta a casa para sua mãe que aparenta conhecer aquele espaço pela primeira vez. A câmera se desloca de um cômodo para o outro em planos fixos e tracking shots laterais sempre mediada por um tripé (curiosamente um dispositivo de estabilização de imagens), junto ao caminhar das personagens. Os planos são dessaturados, assépticos e dominados por tons de cinza; os corpos se movem de um lado para o outro, conversam e vivem sua vida de maneira autônoma e frívola.

O espaço é comum ao espectador, pois o filme já o havia percorrido em diferentes momentos, entretanto, o outro lado do muro, que havia sido estrategicamente escondido por Glazer, se impõem na tela em meio a conversa trivial entre mãe e filha. O estilo das construções, as chaminés e a fumaça escura são signos que não abrem margem para a dúvida que do outro lado está Auschwitz. A câmera, que até então se posicionava estranhamente abaixo dos personagens, passa a ser disposta em plongée – recurso que nega qualquer possibilidade de não ver aquilo que habita o fundo do plano, o outro lado do muro. Trata-se de uma questão de mise-en-scéne e profundidade de campo, e Glazer parece estar não apenas muito consciente, mas plenamente convicto dos seus dispositivos de choque. Há, nesse gesto, uma suposta perda de inocência do espectador (ou ao menos ao espectador que, assim como eu, não leu a sinopse do filme) que, diante da ruptura desse véu, se vê obrigado a enfrentar a “História” sob o olhar dos nazistas. 

É curioso enxergar que, seguida a sequência que vemos o campo de concentração ao fundo, a decisão não é dar o contraplano à nós, mas sim uma tela vermelha em que ouvimos gritos angustiados de uma pessoa. Afinal, é fundamental que não tenhamos o contracampo dos judeus e a crueldade dos campos de concentração, pois tal quebra não permitiria a preservação da operação estéril de Zona de Interesse. É como se, para manter intacta a “normalidade” dessa propriedade, e consequentemente o estilo de Glazer, tudo aquilo que acontece do outro lado do muro não pudesse ser visto nem pelo espectador, nem pelos residentes da casa. Afinal de contas, o contracampo é o trauma, a perda da inocência — como muito bem analisou João Lucas Pedrosa para a Revista Multipot. Logo, se estamos privados do trauma e Auschwitz nos é apresentado como “inimaginável”, o que, afinal de contas, é tido como tão perturbador nesse filme?

Se engana quem pensa que Zona de Interesse apenas “não quer mostrar” o horror do holocausto em respeito às vítimas, uma vez que o mesmo se utiliza de imagens em negativo (um recurso visual fortemente opaco e que dificulta a inteligibilidade dos planos) toda vez que a câmera sai das propriedades controladas pelos nazistas. Na última sequência do filme, visitamos o museu de Auschwitz no tempo presente e, em alguns planos, vemos objetos e pertences ali expostos. Entretanto, sua aposta em enfrentar a realidade ocorre na transparência. Não é a primeira e nem a única vez que Glazer aposta na recusa ao visível e numa certa perturbação sonora de elementos do fora de campo, aqui representados como pertencentes à ordem do real, para invadir o universo farsesco e austero que foi construído ao redor dessa casa. Seja por sons que penetram o campo ou por telas que interrompem a narrativa com sons extraídos de Auschwitz, esse é um recurso que se repete didaticamente por todo o longa.

Se o som é a brecha do real nesse universo farsesco, cabe à sua construção desestabilizar a experiência de austeridade do espectador. O que acontece é que o som, em sua materialidade, contudo, não perturba. Glazer parece tão convicto de seus artifícios e seus maneirismos para causar determinadas emoções sob o público que não sobra espaço algum para nada delirante que sua disposição espacial suscita, não há margem para a desordem, ainda que tente. Trata-se de um desconforto calculado para chocar o espectador de modo fácil e garantir que seu estilo seja preservado sem muitos erros. As telas em cores sólidas reforçam o artifício preguiçoso do filme, maquiado de sofisticação e opacidade, em criar uma enganosa atmosfera hostil por meio de sons incômodos. Ruídos que parecem se bastar em seu próprio gesto, na própria intenção de fazer algo “diferente”, de “ser imponente”.

A suposta perda da inocência oferecida pelo som, e os planos conjuntos entre personagens e Auschwitz, não é emancipatória, mas sim conformista. O espectador e os personagens não conhecem o real, não são deslocados de sua posição, pois todas as fissuras que o filme abre já estão meticulosamente mediadas e controladas para que uma experiência segura se preserve. A ideia de negar o visível como uma posição ética diante de um “holoexploitation” cria, na verdade, uma commodity, um artifício facilmente assimilado e absorvido pelo espectador. Temos um fora de campo que grita, mas um som que não perturba, pelo contrário, é cristalino, límpido e sonante. Temos um risco latente no contracampo, mas um cineasta que recusa a se arriscar. O trauma, aqui, aparece não como uma cicatriz que marca o corpo do espectador e os personagens para sempre, deixando-o em um caminho sem volta frente ao real (tal qual as crianças de Alemanha, ano zero [Roberto Rossellini, 1948]), mas como um pequeno arranhão que se cura após cobri-lo com um band-aid.

Autor

  • Renan Eduardo

    Crítico de cinema e pesquisador. Bacharel em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas e mestrando em Comunicação Social pela UFMG. Atualmente, é editor e redator da Revista Descompasso.

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