O céu sempre disse tudo. Nos filmes de Clint Eastwood esse é um dado incontornável. Há que se entender o clima de seus filmes pelo modo como o céu está posto. Lembremos da cena em A Mula, cujo personagem principal é apreendido quando as nuvens anunciam uma enorme tempestade. Lembremos da escuridão anuviada que toma conta de trabalhos como Sully e Richard Jewell — curiosamente os filmes de Eastwood em que a chaga moral dos personagens quase que os corrompe em sua totalidade. Lembremos do amarelo celeste de Cry Macho, no que conformava a última dança de um ator-autor, enterrado vivo em pleno pôr do sol. Podemos dar todas as voltas. Podemos pensar no azul acinzentado de filmes como Sobre meninos e lobos e Menina de ouro. Podemos ponderar a respeito da melancolia do destino que está selada em Um mundo perfeito, filme assustadoramente solar, cuja moldura do estandarte azul que é o céu daquele Texas de Butch e Phillip nos carrega diretamente para seu inescapável desfecho. Acho que não precisaremos sequer citar As pontes de Madison, onde céu e coração estão arraigados um a um, como um corpo só, respondendo incessantemente à paixão do velho cowboy Robert Kincaid.
Nos filmes de Clint Eastwood, não há o que nos separe do céu, não há o que faça nossos olhos escaparem dele. Para um cineasta cuja herança atávica reside na fundação originária do mito, do western e, portanto, do horizonte, a cor do céu sempre terá papel fundamental. É uma lição aprendida por Eastwood em seus idos de ator, mas reconfigurada pelo Clint cineasta como objeto de ternura. Debaixo das vestes do homem bronco, reside um elemento tão simples e corriqueiro, um céu como testemunha, como córtex fundamental — e por vezes até simplório — de seu testamento. Nos filmes de Clint, a pista maior está sempre no céu.
Em Jurado N.2, provavelmente o último trabalho de direção do já nonagenário cineasta, não é muito diferente. Mas aqui o céu esconde um segredo, que desmonta o filme por completo: ele é o antagonista do nosso personagem. Justin Kent, ex-alcóolatra, escritor de amenidades em uma revista local de entretenimento, está às vésperas de ser pai. Em meio ao turbilhão de emoções e à possibilidade de, enfim, ver reconstruída a vida que estava aos frangalhos após um acidente aéreo e a perda de um filho ainda no ventre de sua esposa, Kent é convocado para ser júri de um assassinato. Neste momento se instauram duas perguntas, uma com importância bem menor que a outra. A primeira diz respeito ao próprio julgamento, que acusa James Michael Sythe de ser responsável por dar fim à vida da namorada Kendall Carter. Mas isto, como se percebe logo de cara, não será tão relevante. A pergunta que guia mesmo o filme é justamente o que fará Justin Kent uma vez que o mesmo se reconhece ele próprio como o verdadeiro culpado deste crime.
Voltemos ao céu: Jurado N.2 é filmado num registro neutro, as cores que embalsamam a pequena cidade de Savannah, na Geórgia, revelam um cotidiano amiúde, desenhado sob as vestes de um clima pueril e ameno. Enquanto o mundo lá fora se apresenta regado de neutralidades — afinal de contas, o que pede a justiça é justamente a neutralidade —, o protagonista vive um verdadeiro pesadelo. É justamente desse peso da balança que se dispõe o filme, equilibrado na contradição que coloca opostos à altura dos olhos: enquanto o “homem de família” passa impune, com direito a votar sobre a vida de um suposto criminoso, o acusado do crime, inocente de ocasião, vê-se incapaz de lutar pela própria liberdade. Nesse sentido, o que Eastwood monta em Jurado N.2 é um jogo de espelhos: de um lado, o tribunal solar em que ocorre o julgamento, do outro (separados por um lindo raccord), o bar noturno, regado à trovoadas, em que o crime teria ocorrido. De um lado, uma promotora de justiça buscando um culpado fácil, a qualquer custo. Do outro, um advogado do Estado, a defender um cliente sem crer factualmente na sua inocência. Entre o próprio Justin Kent está previsto um espelho: se há a imagem de um homem benevolente, representado como bom moço (o estilo vintage dos sapatênis à camisa solta, o topete sempre erguido), há também a imagem deste mesmo homem a matar alguém, e não só isso como também a ocultar até o fim da vida este assassinato.
Dentre os filmes mais recentes de Clint Eastwood, Jurado N.2 não é o único a lidar com a ideia de fantasia, de duplo contraditório como fiel da balança. Trabalhos como A Mula e Richard Jewell já faziam muito bem esse papel, ao colocarem homens comuns da sociedade para executarem tarefas sobre humanas. Para o Earl de A Mula, a redenção estava em ser um “bom senhor” nas aparências, e um traficante de drogas na prática. Para Jewell, interpretado por Paul Walter Hauser, a dúvida se resumia entre o que há de heroísmo e o que há de banal e farsesco em um homem comum, de meia idade, que vive com a mãe. No caso Jurado N.2, esta equação entre o que se vê do personagem e o que ele revela a nós, espectadores, está redobrada. Mais do que descortinar desfechos, Jurado N.2 faz um exercício de reimaginar a imagem em tempo real. Quase todas as testemunhas do tribunal disputam uma imagem de James Michael Sythe, cada ela computando uma versão: primeiro somos apresentados ao protótipo do namorado raivoso, capaz de bater na própria companheira; depois, na reencenação da discussão de bar, passamos a desconfiar da índole imposta a este homem; até que as outras testemunhas trazem até o espectador alguns vídeos da situação, em que, mais do que interferir na violência, o que importa é registrar a violência. Em suma, o trabalho de Eastwood imposto ao júri (também espectador) e a nós, espectadores (também júri, em certo sentido), é o de ver pela fôrma da deformidade. De imaginar versões sobre uma imagem, uma cena — o cinema propriamente — que não está dada com clareza, mas que se revela nas arestas, e que se esgota nas suas repetições. A disputa do filme está toda na imagem, e a verdade se revelará através dela também.
Pensemos no quanto tudo isto é dúbio em certo sentido: trata-se de um filme que investiga a relação de duas pessoas, uma delas presa, a outra morta. São replicadas inúmeras vezes cenas de sua relação, sem que qualquer uma delas possa falar ou descrever os acontecimentos. O mais perto que alguém chega de poder justificar suas próprias imagens é justamente no momento em que assistimos a um vídeo feito por Kendall, antes do acidente. Outro dado chama atenção: no tribunal, pouco se discute sobre Kendall, mas muito se fala sobre James Sythe. A disputa, neste sentido, é a de construir uma imagem para Sythe, imagem ou de culpa ou de inocência. Quando se delibera acerca da decisão do júri, um personagem levanta a mão para citar as tatuagens do acusado. Para além de um rosto cerrado pela barba e das mãos algemadas frente ao corpo, as partes em que aparecem suas tatuagens são as únicas que podemos observar. A proposta de condenação, afinal, surgiria pelo corpo, pela imagem do corpo. Pois certamente alguém com aquelas imagens no corpo poderia cometer tal crime. Ou seja, é um mundo onde todos estão espantosamente delineados por suas imagens, jamais pelo seu conteúdo, inclusive no que diz respeito aos seus arquétipos, coisa que o filme faz questão de tentar tangenciar, ainda que brevemente, ao tratar de cada um dos doze membros do júri. E aí, nesse sentido, é tão importante pensar no céu que povoa o filme: mesmo em um ambiente interno, como no tribunal, a presença do céu, da luz do sol, é latente. Mas sua deformidade demarca o descompasso que o filme apresenta: essa luz entra apenas pelas frestas, emulando sombras de uma grade, nunca totalmente visível, isto é, deformada, tal qual a visão das personagens.
De todos os arquétipos, James Sythe parece o mais difícil de ser derrubado. Como disse anteriormente, até o céu parece estar amalgamado a ele, inundado em seu estado de espírito estéril. É talvez esse o fator que torna um filme como Jurado N.2 tão perturbador, a ideia de que a projeção sobre o outro é feita não à medida que se interpreta uma imagem do outro, mas que se vê uma imagem do outro. O jogo estabelecido entre a abertura do filme com a imagem da justiça vendada está justamente aí: não é um filme em que é preciso ver para crer, mas sim um mundo em que as personagens devem crer, para somente depois conseguir ver o que está diante delas. Justamente por isso que, ao fim do filme, Justin Kent derrama lágrimas ao ver constatado a pena de James Sythe. Pois é quando, finalmente — por uma chaga moral imposta a si mesmo — o personagem é obrigado a inescapável e árdua tarefa de ver — e ver não somente a realidade perfazendo-se em sua frente, mas sobretudo uma realidade que deveria ser sua, e não do outro. Tal qual um espelho que, ao refletir, nos mostra senão nosso lado mais feio, nossa deformidade em si.
Justin Kent passara o filme todo com os olhos em visão panorâmica. Observou os critérios da justiça, observou movimentos da promotoria, compôs um júri, deu um voto para condenação, revisitou um assassinato de cabo a rabo, a patrir de inúmeras imagens. Viu tudo que poderia ser visto. Mas nunca viu a justiça em si. O rapaz, coadjuvante de um mundo imperfeito e deformado pelas suas próprias lentes, pelas lentes da tragédia interna, dos sentimentos nublados, vê-se então obrigado a olhar para este mundo que antes conhecera, mas agora sem escrúpulos. Mais do que tudo, Justin Kent vê-se condenado a ser visto por este mundo, julgado por ele.
A esse dilema de Justin, de não ver aquilo que já está crente e ciente que é verdade, isto é, sua própria culpa, Clint Eastwood parece responder com um último plano magistral. Sob uma luz solar, composta por um azul incandescente, por um céu que abrigara, finalmente, toda a chaga deste personagem, repousa um zoom in magnífico, latente, que esconde o contra-plano de uma promotora prestes a capturá-lo, prestes a fazê-lo viver em um mundo onde as pessoas descobrem que ele próprio não é aquilo que elas veem. Quando as lentes, enfim, chegam ao rosto de Justin, descortinado em plena luz do dia, uma única imagem é capaz de ressoar: trata-se do horror. O horror de ver esculpido não somente a dimensão do disfarce, do ídolo caído, mas também de ver-se, ao fim e ao cabo, olhos nos olhos com o real. Agora, nem o céu poderá protegê-lo.