Previsão do tempo/Janeiro de 2025

Retornamos em 2025 e com novidades. Para abrir nossa temporada de publicações, precedida pela cobertura da 28° Mostra de Cinema de Tiradentes (24 de janeiro a 2 de fevereiro), a Revista Descompasso estreia uma coluna inédita, que, esperamos, seja permanente daqui para frente. Chamamos de Previsão do tempo, pois traduzem bem a ideia de um comentário rápido acerca daquilo que foi visto, pensado, discutido ou sentido no mês que se passou. A previsão de janeiro traz comentários dos quatro editores da revista — Ana Júlia Silvino, Egberto Santana, Renan Eduardo e Rubens Fabricio Anzolin — acerca de filmes vistos, programações de cinematecas em suas respectivas cidades, ou mesmo reflexões mais amplas, que abordem música, artes visuais, uma rede de filmes vistos… e o que mais vier à cabeça.

O intuito desta publicação é único: ter reunido o que nossos redatores e colaboradores atravessaram enquanto experiência estética durante 30 dias. É um modo de, como conjunto, estarmos afiados, em conversas, pensamentos e ideias. E também um modo de disparar ao leitor tanto indicações como provocações e comentários sobre o contexto do cinema e suas amplitudes. Não há um compromisso com o contemporâneo, com os lançamentos; tampouco há um encargo com o cinema exclusivamente. Confiamos de que a experiência cinematográfica está interligada com as mais diversas artes e vertentes, com os mais complexos (e por que não simples) atravessamentos, inclusive e sobretudo, com a vida que levamos para poder dedicar-nos ao cinema. Portanto, que o leitor não espere desta “coluna” algo como uma “coluna”, mas que esteja convidado, isto sim, a corresponder, ouvir, trocar e comentar aquelas ideias que nos passaram de modo mais indireto, simples e objetivo. É, em algum sentido, um compromisso com o descompromisso: falar de cinema, mas não só, e não necessariamente partindo dele. Às vezes, só de cinema. Às vezes, menos de cinema e muito mais sobre música, publicidade, estímulos visuais, e como tudo isto se relaciona com nossa experiência crítica e imagética. 

Que seja um 2025 próspero aos nossos leitores e redatores. Muito em breve, nossa página estará repleta de textos de cobertura, acompanhados por um novo dossiê e por novidades que, ainda, não podemos revelar. Mas que reafirmam nossa aposta no pensamento acerca do cinema brasileiro, no experimental, em suas margens e dobras; além, é claro, de seguirmos firmes no gesto crítico conforme acreditamos: em contraste e conflito, em proposição de ideias (nunca em esgotamento), em perguntas, muito mais do que respostas. Pois bem, aí está: o mês de janeiro pela Revista Descompasso.

GOD BLESS AMERICA
Por Ana Júlia Silvino

Caminhar pelo cubo branco, o espaço neutro das exposições, significa estar sempre à espera de algo que o preencha e o desestabilize. Neste mês, ao passear pelos largos corredores do Museu Guggenheim Bilbao, encontrei na exposição “Paul Pfeiffer: Prólogo à História do Nascimento da Liberdade” a provocação e a inovação formal que venho buscando no cinema há alguns meses. Por meio de uma crítica à cultura de massas e à indústria esportiva americana, Pfeiffer cria camadas nas superfícies tecnológicas do vídeo, da fotografia, da instalação e da escultura. Lembro-me, por exemplo, de entrar em uma sala ampla, com pé direito alto, e paredes em um tom de branco cegante – como sempre são as galerias e as igrejas evangélicas – e não encontrar nenhum objeto. O estranhamento dá lugar a uma escuta curiosa, que, pouco a pouco, é tomada pelos gritos de uma torcida organizada. Entretanto, não há jogo nem imagem representativa desse público que grita. Caminho por esse espaço sem a esperança de encontrar algo mais, mas continuo, porque é assim que os museus funcionam. Ao final do trajeto, deparo-me com um monitor LCD de 5,6 polegadas. Uma tela minúscula nesse espaço de vazio abundante projeta a imagem desses corpos. Atrás da tela, uma parede falsa, também branca, revela uma projeção em dois canais do jogo em questão: de um lado, uma partida financiada pela Alemanha de Hitler; do outro, uma partida atual nos Estados Unidos. Depois disso, encontrar em outra sala o tronco esquartejado de Justin Bieber, com um laço de fita rosa envolvido na cueca da Calvin Klein, foi só um extra.

Pálidas paredes brancas assustadoras

Por Egberto Santana

No primeiro mês do ano retornei minha atenção à série Ruptura, de 2022, que voltou após dois anos de hiato. A série se debruça sobre a alienação corporativa e a instrumentalização perversa do equilíbrio entre a vida social e o trabalho. Recentemente, nas redes sociais, muito se debateu acerca do custo envolvido para a sequência: o valor de 20 milhões de dólares para cada episódio, sendo dez ao todo, o que torna ela uma das mais caras da história. Afinal, como pálidas paredes brancas e um ambiente “padrão corporativo” podem custar tamanho valor? É esse, de fato, o maior número de cenas que vimos ao longo dos episódios e, nessa revisão, o que mais me chamou atenção. Em função do vazio do universo corporativo retratado, constituído por um corredor labiríntico, surgem perguntas que dão caldo para as teorias dos espectadores e à investigação dos personagens. Além de todo um aspecto assombroso em estar dentro de um escritório clean, controlado, vigiado, cuja fidelidade à empresa e ao objetivo de trabalho nem se compreende muito bem. Você continua, pois deve trabalhar. Voltemos à pergunta inicial. Uma busca rápida nos artigos que explicam o valor exorbitante responde ao estranhamento: o hiato da série foi provocado pela greve dos roteiristas de Hollywood, gerando novos contratos de todos os envolvidos, além de novas locações e a evidente nova fama da produção. Se até o fim da segunda temporada não surgirem espaçonaves corporativas e outras pirações megalomaníacas, há apenas uma motivação para o investimento milionário (ainda que absurdo e fora dos padrões do lado de cá): a valorização do trabalho.

Suor, gozo e sangue

Por Renan Eduardo

Eu, assim como boa parte das pessoas que partilham de algum interesse pelo cinema (não somente o que consideramos como cinéfilos), dedicamos parte de nosso tempo para ver ou revisitar as adaptações audiovisuais do romance “Drácula”, escrito por Bram Stoker. Dentre as que estiveram presentes com mais frequência no Letterboxd: Nosferatu (1922), dirigido por  F. W. Murnau; Nosferatu – O vampiro da noite (1979), dirigido por Werner Herzog; O Drácula de Bram Stoker (1992), dirigido por Francis Ford Coppola e o recente Nosferatu (2024), de Robert Eggers, uma das mais interessantes adaptações parece ter passado abaixo do radar: Nosferato no Brasil (1970), dirigido por Ivan Cardoso. Diferentemente de uma sombra do medieval que ameaça o cientificismo iluminista (Murnau) ou de um vampiro cansado de sua eternidade (Herzog), o Drácula de Ivan Cardoso é uma entidade típica da antropofagia cultural presente no tropicalismo dos anos 1970 — no filme de Rolling Stones a Toquinho, de Francisco Alves a Roberto Carlos. Trajado de uma túnica negra (Tenório Cavalcanti) e com os cabelos longos e volumosos (Caetano Veloso?), o vampiro tropical (não a toa interpretado por Torquato Neto) não caminha pelas sombras, mas seduz, transa e mata mulheres e homens nas ruas ensolaradas do Rio de Janeiro. A libertinagem sexual (dos filmes e da tropicália) encontra aqui talvez a maior expressão de sua eloquência: a mescla libidinal de fluidos: suor, gozo e sangue — nem sempre nessa ordem. 

Foi David Lynch, viver o mistério, outra e outra vez, amém.

Por Rubens Fabricio Anzolin
Janeiro tornou-se um mês de luto para os cinéfilos ao redor do mundo. A partida de David Lynch parece não deixar dúvidas de que se trata da despedida de um grande mestre, pelo menos neste plano. Não recordo, assim, de forma rápida, de qualquer outro cineasta que tenha partido e gerado tamanha comoção. (Godard e Straub, talvez, mas de modos completamente diferentes). Afora seus filmes — trabalhos dos quais seria necessário a dedicação de uma vida para melhor comentar — o que fica é a certeza de termos visto viver um cineasta que mexeu tanto com seus colaboradores quanto com seus fieis espectadores. O curioso é perceber como David Lynch, ao seu modo particular de ser, nunca foi um daqueles cineastas aos quais se dobra uma seita: uma espécie de ame ou deixe-o que se estabelece com realizadores como M. Night Shyamalan ou Clint Eastwood. (Cineastas que eu, particularmente, amo de paixão, aliás). David Lynch parecia cruzar a linha da unanimidade, são poucas as pessoas que conheço e respeito que talvez não gostassem de seus filmes. Ou que, ao menos, não percebessem a complexa maquinação imagética a que ele submetia seus espectadores. Mais do que isso, sua unanimidade me parece marcada pelas riscas de um sujeito singular, como que um amigo próximo a todos. O ar de gente mais velha, o topete sempre erguido, o cigarro cantarolando, tudo isso conformava — junto aos vídeos sobre o tempo em Los Angeles, junto às respostas sempre espertas e arteiras — um sujeito de admiração transcendente. É como amar alguém que certamente nos faz melhor. É como ver partir alguém que participou de um movimento iniciático para todo e qualquer amante de cinema — se você, em pesquisas ou estudos sobre filmes, não se deparou cedo com David Lynch, certamente é uma exceção. A grande maioria de nós, que gostamos de filmes, estamos alinhados a Lynch desde o começo da trajetória. O curioso é que, diferente de boa parte dos cineastas iniciáticos, ele nos acompanha pela eternidade. Nunca é uma primeira visita a David Lynch. Logo descobrimos que a primeira visada é a certeza de um retorno incalculável. Ir, voltar, ir de novo. Perfurar suas imagens para deixar-se ser perfurado. A graça de seu mundo é que ele não se esgota. A graça de sua vida, em sua particularidade elementar — como não pensar em Lynch com uma vaca e o enorme cartaz de Laura Palmer? –, é a de saber que o seu iminente fim não demarca propriamente um fim. Demarca uma outra porta da imaginação que se abre, um buraco oculto novo, para o qual Lynch adentra na certeza do mistério, como quando os personagens de Twin Peaks voltam em outras vestes, como quando Estrada Perdida se redobra em dois, como quando vemos Laura Harrington e Naomi Watts chorando no musical em Cidade dos Sonhos. Não, nada aqui é definitivo. Gostamos de pensar que essa é só mais uma passagem. Para o homem que amava os mistérios, fica agora o mistério da morte propriamente. Que ele aproveite, então. O diabo há de se divertir com ele.

Autor

  • Revista Descompasso

    A Descompasso foi criada em agosto de 2023 com o objetivo de ser um veículo independente de exercício, prática e expressão da escrita crítica sobre o cinema, a música e outras manifestações artísticas.

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