Estrela Brava, de Jorge Polo, é a história de um término. Ou de um luto. Ele não é o único filme da Mostra a tematizar, direta ou indiretamente, um processo de adeus. Nem Deus é tão justo quanto seus jeans, de Sérgio Silva, por exemplo, é centrado em um personagem que se vê às voltas tanto com o fantasma do namorado que morreu quanto com a perspectiva de separação do atual. O próprio Batguano Returns, de Tavinho Teixeira, narra o descolamento progressivo de Roben do homem-morcego. Eis o que o protagonista de Estrela Brava diz ao ex-namorado em um áudio de whatsapp: “vai tomar no cu, Gabriel”. A frase, encerrando o curta-metragem, surge logo após um alienígena – saído de um filme de Lucio Fulci – enfiar seu braço de sangue e vísceras goela abaixo do personagem. O monstro, desobstruindo a garganta e permitindo a emergência da fala, inaugura a possibilidade de romper com o silêncio, a polidez burguesa e a autocensura. Certos cordões precisam ser cortados. Estrela Brava, com sua narrativa de luto e reconquista da palavra, nos estimula a perguntar: de quem Tiradentes se despede com esta 28ª edição da Mostra e qual fala emerge do gargalo desimpedido?
Uma resposta para a primeira pergunta provavelmente não existe ou talvez só exista pelo que a resposta da segunda permite entrever. E o que podemos dizer sobre a segunda questão – a julgar pelo que vimos na Mostra Aurora, na Mostra Olhos Livres e em alguns curtas-metragens – é que os filmes deste ano nos recordam que “no princípio era o verbo”. A palavra gritada, vomitada, exorcizada, ritmada, musicalizada, monocórdica, digitalizada ou fragmentada veio preencher o silêncio deixado por certos representantes do novíssimo cinema brasileiro. É como se um conjunto significativo de filmes tivesse sido perfurado, ele também, pelo braço em formato de broca do alienígena de Estrela Brava, dando vazão à fala entalada na garganta pelos códigos do bom-modismo. Inevitavelmente, com isso surge também o diálogo com o teatro (cf. o texto que escrevemos sobre Deuses da Peste), que vem nos lembrar, mais uma vez, que o cinema é uma arte impura na qual a palavra e a fala são matérias plásticas entre outras. Teríamos dado adeus, em Tiradentes, a um cinema soturno, silencioso e naturalista?
Embora filmes parcial ou totalmente silenciosos tenham comparecido na seleção, parte considerável das obras exibidas trouxeram à cena a palavra que é falada como se tudo dependesse disto. Expelida, modulada, desenhada, dublada ou em som direto. Pudemos vê-la dilapidada como um diamante por Mariana Ximenes no papel de uma cadela em Nem Deus é tão justo quanto seus jeans (onde figuram, aliás, diversas sessões de terapia). Pudemos ouvi-la processada digitalmente como um artifício neoliberal em Batguano Returns. Pudemos senti-la litúrgica e monotônica em O Mundo dos Mortos, de Pedro Tavares, que parece se inspirar nos trabalhos de Rita Azevedo Gomes ou mesmo nos filmes de Straub-Huillet. E pudemos experimentá-la em toda sua melancolia aveludada com o sublime monólogo final de Murilo Sampaio em A vida secreta de meus três homens, dirigido por Letícia Simões. Para esses filmes tagarelas, nada tão importante quanto ouvir um corpo que fala, diante da câmera ou fora de quadro, em toda a elasticidade de sua voz ou em tudo que esta voz comporta como matéria de experimentação.
Resumo da Ópera, dirigido por Honório Félix e Breno de Lacerda, permanece o filme mais impressionante da Mostra. Filmado quase inteiramente como um falso plano-sequência que percorre os espaços do Theatro José de Alencar, em Fortaleza, ele faz desfilar uma galeria de personagens extravagantes, trajes suntuosos, máscaras exóticas e, sobretudo, monólogos. O que há de espantoso, neste caso, não é apenas o virtuosismo da câmera ou o talento dos responsáveis pela confecção dos figurinos, mas o trabalho – ênfase na dimensão de processo imbuída na palavra – desempenhado pelos atores e atrizes a nível vocal. A dublagem a que o filme recorre, que o perfuma com um delicioso artificialismo felliniano, permite com que, na pós-produção, a voz dos intérpretes seja submetida a diferentes tipos de inflexão ou variação. É sua dimensão experimental: experimenta-se com a textura, a entonação, o ritmo, a altura, as estruturas silábicas, o timbre, a densidade e o grão da voz. O trabalho é tão musical que, por vezes, significante e significado parecem se desligar um do outro, como se passássemos a habitar um universo fônico e não exatamente semântico, acústico e não necessariamente inteligível.
Também vimos, em Tiradentes, aquele que provavelmente é o primeiro filme falado nas línguas maxakali, kaiowá e português. O belo Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá (Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Luisa Lanna e Roberto Romero) documenta o desejo de Sueli Maxakali de reencontrar o pai, Luis Kaiowá, enquanto o registro deste encontro porvir testemunha a luta contínua dos povos Kaiowá e Tikmũ’ũn pela defesa e demarcação de seus territórios. Sabemos da importância da oralidade e da escuta nas cosmologias indígenas, o que faz com que a palavra falada surja, no filme, como um dispositivo central e estruturante, que influencia a cadência dos planos e as formas de encenação. O gesto de falar equivale também, enfim, a desenterrar uma história de violência, fazer emergir uma situação histórica que a epistemologia branca tratou (e trata) de apagar, desobstruir o aparato colonial para dar vazão a vozes historicamente silenciadas. No final do filme, já em tela preta, Luis Kaiowá diz que, quando morrer, sobreviverá como fala. A imagem se foi, mas sua voz permaneceu.
Por um cinema prolixo?