Last Updated on: 23rd janeiro 2024, 07:31 pm
“Quem nos deu permissão para praticar o ato de escrever? […] Eu faço qualquer coisa para adiar este ato — esvazio o lixo, atendo o telefone. […] O que temos para contribuir, para dar? Nossas próprias expectativas nos condicionam. […] Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. […] Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora […] Escreverei sobre o não dito, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever” Gloria Anzaldúa em trechos de “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, 1981.
“[…] por insistir em expor o sujeito que fala, com sua mirada intencional e suas formalizações estéticas, o ensaio é também excluído de todos aqueles campos de conhecimento (filosofia, ciência) considerados objetivos. Em outras palavras, o atributo ‘literário’ desqualifica o ensaio como fonte de saber, a irrupção da subjetividade compromete a objetividade e, por sequência, aquele ‘rigor’ que supostamente marca todo processo de conhecimento […] o ensaio não tem lugar dentro de uma cultura baseada na dicotomia das esferas do saber e da experiência sensível e que, desde Platão, convencionou separar poesia e filosofia, arte e ciência”,
Arlindo Machado em trechos de “O filme-ensaio”, 2009.
Ao considerar a histórica proeminência dos textos no exercício da crítica cinematográfica, tenho pensando muito sobre de onde eles vêm, nesse lugar abstrato e um tanto desorganizado dos pensamentos antes de se tornarem algo estruturado fora da cabeça. Tenho pensado sobre as dificuldades objetivas para iniciar e terminar um texto – este, inclusive –, sejam elas de ordem sócio-histórica, sejam elas vinculadas a especificidades e desafios do trabalho da escrita para qualquer pessoa. Tempo, gestação, lapidação, dedicação, exposição.
Como parte dessas reflexões, percebo que o anseio – e talvez o vício – do texto crítico como fim tem influenciado minhas experiências como espectadora: começo a pensar textualmente durante a fruição; depois, escrevo (muitas vezes mentalmente) fragmentos de textos que, se não publicados, ficam aprisionados e não encontram seus pares. Afinal, todo texto exposto é – ou deveria ser – necessariamente uma vontade de diálogo.
O desejo de conversa com leitores da edição “Pulsões sonoras: as imagens que vibram” me fez querer escrever a respeito de filmes que retrataram a experiência dos bailes Black no Brasil das décadas de 1970 e 1980. Mais precisamente, proponho nas linhas que seguem uma singela aproximação entre as diferenças das imagens de bailes Black presentes em dois longas-metragens documentais bastante distintos. Um contemporâneo, Chic Show (Emílio Domingos e Felipe Giuntini, 2023), e outro mais antigo, Orí (Raquel Gerber, 1989).
As ideias presentes aqui estão em diálogo com alguns pensamentos que escrevi em um outro texto publicado no catálogo da 18ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, no ano passado. Em “Do samba ao rap: negro-imagem-música como tema e vida no cinema brasileiro”, tracei um caminho de análise sobre quando e como a abordagem cinematográfica da cultura musical negra brasileira levou à materialização imagética de vivências, corpos e/ou personagens negras em filmes nacionais. O objetivo era dar atenção aos momentos em que a execução da música negra em nossos filmes transcendeu o âmbito da trilha sonora e se mostrou como imagem que tem o corpo negro (criador, emissor e executor dessa manifestação cultural na realidade) como elemento imprescindível.
Naquele texto, defendi que, mesmo quando mobilizada como objeto temático “brasileiríssimo” de filmes realizados majoritariamente por diretores brancos na história do cinema nacional, as musicalidades negras e as estéticas sonora, poética-verbal e gestual-imagética intrínsecas a elas, possibilitaram também a documentação e/ou representação audiovisual de vivências negras coletivas (dançantes) não pautadas pela cisão entre razão e emoção1.
Mais do que uma característica de nossos filmes, essa percepção reflete princípios da cultura negra brasileira – performances rituais, cerimônias e festejos – que nos permitem identificar sua execução como parte do cotidiano e da partilha de conhecimento em grupo. Afinal, conforme escreve a teórica e professora Leda Maria Martins, os ritos afro-brasileiros coletivos evidenciam o papel do corpo e da voz como “portais de inscrição de saberes de várias ordens, dentre elas a filosófica”; evidenciam conhecimentos que se grafam “no gesto, no movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como os ritmos e timbres da vocalidade2”.
Nesse sentido, escrever sobre Orí e Chic Show é tentar entender como e de onde emana a força das musicalidades negras presentes em obras audiovisuais que a associam a corpos negros dançantes; entender a música negra como movimento materializado no corpo-negro-imagem e a dança como dado dessas musicalidades e vice-versa. Aqui, lembramos do que escrevem Ana Júlia Silvino e Bernardo Oliveira em crítica sobre o documentário Summer Of Soul (… Ou, Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada (Questlove, 2021): “‘A dança vem antes’, costuma-se afirmar a respeito da música negra, seja litúrgica, seja pagã”. “A música [negra] pensa por múltiplas imagens dos corpos coletivos, dos movimentos do tronco, dos braços, das pernas, dos movimentos conjuntos, do passinho Soul Train”, completam.
Para mim, a força dessas imagens-sons-corpos é algo tão abstrato quanto “materializável”, pois advém de uma potente realidade material anterior: o caráter ao mesmo tempo político e sensível de situações que, em países que foram colonizados e tiveram regimes escravocratas, colocam muitos corpos negros juntos fruindo sua cultura/suas artes em um mesmo espaço-tempo – ideia que será resgatada e desdobrada, ou seja, ressoará, em outros momentos deste texto.
Frame de Orí (Raquel Gerber, 1989)
Mais falantes que dançantes
Chic Show resgata, por meio de entrevistas no formato “cabeça falante” e da exploração de imagens de arquivo, a história do baile Black homônimo realizado na cidade de São Paulo, a partir da idealização e da gestão do empresário Luiz Alberto da Silva, vulgo Luizão, que, como personagem do filme, costura a linha do tempo dessa história. O documentário evidencia a influência que o baile Chic Show teve na disseminação da black music no Brasil; na apresentação de reconhecidos músicos negros brasileiros, como Jorge Ben, Tim Maia, Gilberto Gil e Sandra de Sá, para um público preto expressivo no país; e no surgimento de vertentes musicais nacionais como o rap e o pagode dos anos 1990.
Ainda no início do documentário, um arquivo midiático mostra uma frequentadora dos bailes, então realizados na Sociedade Esportiva Palmeiras, dizendo: “Nós viemos aqui para achar aquele meio social que nós queremos curtir, aquele salão, um determinado lugar que você se sente bem, que você se sente gente, não aquele lugar que você vegeta. [Viemos para um lugar onde] você quer sentir…”.
Em outro momento do filme, o entrevistado Junior Vox, do Grupo Sampa Crew, afirma: “a música tem esse poder de transformar sua vida, sua cabeça e seu coração. A Chic Show era assim: quanto mais música, [mais] os nossos problemas ficavam para fora do baile”.
Segundo Luizão, nos eventos da Chic Show, os DJs eram um espetáculo e faziam as pessoas dançarem das 22h às 6h. “Fazer dançar é por pra fora a alegria, é extravasar”, diz o empresário, seguido da seguinte fala do DJ e produtor Flavio Luiz a respeito dos responsáveis pelo som nos encontros: “eles [os DJs da Chic Show] não viravam na batida, não tinham grandes técnicas. A técnica que eles tinham e que eles abusavam era a sensibilidade, entender o outro, entender a necessidade do baile naquele momento”.
Apesar do teor das falas apontar para o imperativo da fruição corporal nos bailes Black a partir da música, as cenas de dança nesses espaços são mostradas no documentário por meio de cortes rápidos, ou seja, de forma descontinuada, sem que se perceba ou se sinta literalmente um “flow”. Muitas vezes, são mostradas por meio de fotografias, sem que haja movimento advindo das próprias. Isso faz com que, como espectadores, não sintamos audiovisualmente as fortes conexões entre a música tocada e os corpos nos bailes, como mencionam diferentes personagens ao longo do documentário.
Mesmo nas imagens de arquivo que têm movimento outro corte de fluidez é sentido de forma proeminente: o som dessas cenas não emana das imagens, mas sim é sobreposto a elas como trilhas sonoras límpidas de músicas e batidas facilmente reconhecíveis como black music.
Fotografias e filmagens de shows realizados nos bailes da Chic Show, como os dos já mencionados Jorge Ben, Tim Maia, Sandra de Sá, e também os de Carlos da Fé, James Brown, Cheryl Lynn e banda Earth, Wind and Fire, não se atentam a mostrar o público fruindo o som, e são, justamente, sobrepostas pelas mencionadas trilhas sonoras de som cristalino compostas por músicas desses próprios artistas.
A escolha leva a uma forma artificial, “arrumada” e ainda mais mediada de nosso contato com os bailes Blacks das décadas de 1970 e 1980 no Brasil por meio de um filme. A trepidação e a rugosidade sonora dos shows e dias de baile são suprimidas, tornando estéreo o caráter histórico da vibração da liberdade desses espaços na época – e estamos em plena Ditadura Militar –; espaços que por vezes no filme parecem ser reproduzidos, inclusive, por meio de imagens que literalmente simulam um baile Black com luz baixa azulada.
Aparentemente, o distanciamento histórico do filme com relação ao período de surgimento e efervescência dos bailes Black no país é fator que estrutura e justifica o engasgo de som e movimento das imagens de Chic Show. Afinal, uma vez que o documentário quer resgatar, trabalhar e construir memórias da presença cultural negra em São Paulo a partir desses bailes, e, assim, dar lugar a isso na história e no imaginário nacionais, as imagens de arquivo nele presentes são mobilizadas de forma a corresponder a desejos memorialísticos dos autores e dos espectadores em um período de forte apelo midiático para afirmações identitárias – demanda que talvez leve a codificações artísticas mais fechadas do que, de fato, livres e diversas.
Em outras palavras, as imagens de arquivo no filme estão a reboque de um discurso histórico e memorialístico afetuoso sobre um passado, e não livres para expressar seus desejos e ruídos (também históricos) de forma direta.
Frame de Chic Show (Emílio Domingos e Felipe Giuntini, 2023)
Viver é pulsar
Mostrado próximo dos 50 minutos de filme, o show de Jimmy Bo Horne realizado pela Chic Show em 1980 é o primeiro e um dos únicos momentos em que escutamos o som direto de um evento no documentário de Emílio Domingos e Felipe Giuntini. “São Paulo; Chic Show, Jimmy Bo”, repete o músico filmado em cima do palco escuro em imagem de arquivo exibia durante cerca de dois minutos.
O mesmo show é mostrado de forma muito diferente em Orí, em meio a uma sequência de cerca de sete minutos, que mostra corpos negros dançando em bailes da Chic Show. Assumindo o som direto, com sua rugosidade e trepidação devido à contaminação do ambiente nas condições técnicas de captação, a sequência é sintomaticamente mostrada entre cenas de transe e incorporação registradas no terreiro de candomblé Ilê Xoroquê, em São Paulo.
Aqui, vale evidenciar que Orí se debruça principalmente sobre a efervescência política, intelectual acadêmica, cultural, artística e religiosa dos negros presentes em São Paulo nas décadas de 1970 e 1980 – as filmagens feitas por, entre outros, Jorge Bodanzky, Hermano Penna, Pedro Farkas e a própria Raquel Gerber se deram entre 1977 e 1988.
O filme ensaístico com pegada experimental tem texto e narração da historiadora, militante e poetisa negra Maria Beatriz Nascimento3, cuja biografia pessoal é mobilizada ao longo da obra. Estrutura-se a partir da montagem livre de imagens de arquivos pessoais e midiáticos e de filmagens feitas em terreiros de candomblé, em ensaios de escolas de samba, em congressos e seminários acadêmicos e político-militantes e em bailes Black, incluindo o baile da Chic Show.
Ao equiparar esses espaços e se valer de uma narração que mescla instâncias históricas, épicas, epistemológicas, filosóficas e poéticas das vivências negras diaspóricas transatlânticas, Orí sublima, a todo momento, a normalidade ocidental quanto à cisão entre razão e emoção, perspectiva que, lembrando Arlindo Machado, parece encontrar na forma filme-ensaio sua melhor expressividade.
Diferentemente do que ocorre em Chic Show, em Orí as imagens parecem se contaminar pelas energias historicamente acumuladas quando corpos negros, aprisionados por tanto tempo sob o julgo escravização associada à racialização, decidem criar e manifestar formas coletivas de liberdade e fruição da existência. Como escreve Gilberto Sobrinho, “Ôrí é um filme sobre o processo de libertação do povo negro brasileiro e os modos pelos quais os afrodescendentes têm organizado os seus territórios, desde o próprio corpo até a ocupação do espaço4”.
Ao menos dois caminhos permitem entender a abertura das imagens do filme à vibração emanada dos espaços-tempos onde elas foram captadas: 1) a proximidade entre filmagem e realização do longa-metragem – a obra trabalha com materiais colhidos em um mesmo período histórico da própria realização do documentário, o que me faz lembrar das diferentes origens e efeitos do narrar (observar) e do descrever (participar), conforme formulado pelo historiador, crítico literário e filósofo húngaro Georg Lukács –; 2) e as próprias formulações ensaístas presentes no pensamento narrado de Beatriz Nascimento, que se debruça sobre a ideia de conjunção de forças ou vertentes culturais negras no sentido de um mesmo projeto (político-histórico ou político-artístico emancipatórios) herdados dos quilombos e reatualizados a partir deles.
Na sequência anteriormente mencionada, em que se inserem as imagens do show de Jimmy Bo Horne, vemos não só o público fruindo o som do cantor, como também, por meio de um primeiro plano, as mãos dos fãs e do artista se tocando – ou tentando – de forma desajeitada devido ao calor da situação-show-baile. Após repetir muitas vezes “São Paulo; Chic Show, Jimmy Bo”, Bo Horne é mostrado literalmente tremendo no palco, fazendo lembrar ou se conectando ao movimento “jika” dos corpos em transe em terreiro mostrados antes e depois do trecho.
Fica evidente que é dado espaço-tempo para que acompanhemos uma gradação do estado de entusiasmo do cantor em meio ao seu show: ele treme o corpo e revira os olhos, quando escuta a parte instrumental da própria música que está cantando (“Dance Across The Floor”). A sensação, então, não é apenas de que Bo Horne trepida na imagem a partir e como extensão da vibração das ondas sonoras que pulsam no palco, mas também de que seu movimento corporal-musical visceral e transcendental faz a imagem em si trepidar, vibrar.
Liberdade transtemporal, imagens restituídas
Ainda nessa sequência de imagens-cenas de arquivo, vemos uma espécie de solo de dança de um dos frequentadores do baile da Chic Show. Quase num gesto etnográfico que marca diferentes partes do filme – lembremos que Raquel Gerber também era socióloga –, uma legenda identifica o homem que aparece na tela como “Tologi”, um negro de pele escura, com black power baixo e vestido de branco que dança de forma longilínea na cena de aproximadamente 40 segundos. Simultaneamente, escutamos a narração de Beatriz Nascimento dizer, sobre uma trilha sonora que parece advir do espaço do baile: “Como se o corpo fosse o documento. Não é à toa que a dança para o negro é uma forma de libertação. O homem negro não pode estar liberto, enquanto ele não esquecer o cativeiro, não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo”. Mais do que explicar a imagem, a narração a complementa, sem confina-la a uma certeza objetiva, mas sim a associando a uma camada de especulação ou interpretação histórico-filosófica.
É depois de vermos Tologi deslizando na tela que o filme mostra uma nova cena de transe em ritual de candomblé. Sobre a imagem, a narração de Nascimento continua: “A linguagem do transe é a linguagem da memória […] aquela matéria [o corpo] se distende, mas, ao mesmo tempo, ela traz com muita mais intensidade a história, a memória, o desejo”.
A passagem de imagens do show trepidante de Bo Horne e da dança de Tologi para cenas de transe em terreiro equipara, por meio de montagem intelectual junto ao texto narrado, terreiros e bailes Black como espaços de transcendência das limitantes experiências de pessoas negras em um país historicamente aprisionador e criminalizador de seus corpos e vivências cotidianas. É desde aí que o filme parece organicamente se abrir a uma ressonância, a uma energia vibracional transtemporal – lembremos do “tempo espiralar” conceituado pela já mencionada Leda Martins: em alguma medida, aquilo que ressoa, que volta, que se repete de forma diferente no tempo –, transatlântica e política dos corpos negros quando juntos em diferentes espaços-tempos com possibilidades de sonoridades e corporeidades simultaneamente específicas e múltiplas.
Aqui, lembro o que escrevem Vagner Gonçalves da Silva e Gustavo Maan5 sobre o fato de o documentário não almejar “uma descrição detida e individualizada” de cada um dos territórios/espaços/instituições que mostra. “O que parece realmente importar é uma tentativa de estabelecer a diáspora negra no Brasil como um sistema de relações que é composto por essas múltiplas vivências”, afirmam os autores. “Contra a fragmentação violentadora do regime colonial e escravista, o filme se empenha na reconstrução de uma continuidade histórica da cultura negra, que não se atenha apenas à discursividade sobre o negro na condição de escravo, mas como produtor de uma cultura singular que entrelaça África e América”, completam.
Ainda no início do filme, outro trecho da narração de Nascimento deixa evidente o compromisso político desse tipo de reconstituição e destabilização audiovisual por meio de imagens livres de corpos negros também livres. Quando a poetisa positiva as relações possíveis entre escravizados na constituição de suas próprias subjetividades – “havia uma relação escravo-escravo e também um intercâmbio, uma change também”, afirma a narração –, ela evidencia que as trocas entre aqueles desumanizados estava no “nível do soul”. “Ele [o escravizado] troca com o outro a experiência do sofrer, a experiência da perda da imagem”, diz o texto narrado.
Em contraste e em jogo com tal afirmação, o filme insiste em imagens audiovisuais de fruição e transcendência negras e dá devido espaço-tempo para a percepção de suas vibrações históricas. Assim, dentro das proporções e alcances situados do cinema, Orí propõe como gesto restituir aos possíveis e diferentes espectadores negros – e brancos – imagens de liberdade e conhecimento negros que historicamente foram sufocadas. Então, imagens que vibram-dançam, em verdade, respiram.
Ressoando desde o início de suas filmagens na década de 1970, Orí desestabiliza imagens e montagens “corretas” ou “normais” de documentários sobre vivências e culturas negras regidos por preceitos clássicos e televisivos naturalizados. Nenhuma cabeça falante explica melhor a experiência dos bailes Black do que as próprias imagens sentidas pelo espectador contemporâneo do filme. E imagens de liberdade plena, sem tantas edições, nos permitem insistir em imaginá-las, vivê-las, reivindicá-las sempre, como fizeram antes e antes de nós.
- Como aponta Deivison Mendes Faustino a partir de perspectivas de Frantz Fanon, o “colonialismo definiu os atributos como a emoção, o corpo, a virilidade, ludicidade como essencialmente negros mas, sobretudo, classificou estes elementos como inferiores frente a representações criadas para o Europeu (Razão, civilização, cultura, universalidade)”. Assim, na perspectiva colonialista eurocêntrica, “‘o negro é isto’ (corpo, sexo, cores, ritmos, etc.) e, portanto, ‘não é aquilo…’ (razão, civilização, universal, humano, etc.)”, explica Faustino no artigo “A emoção é negra, a razão é helênica? Considerações fanonianas sobre a (des)universalização do ‘Ser’ negro”, Revista Tecnologia e Sociedade, vol. 9, núm. 18, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2013.
↩︎ - “Performances do tempo espiralar”, de Leda Maria Martins, está disponível em: https://pdfcoffee.com/performances-do-tempo-espiralar-leda-maria-martins-pdf-pdf-free.html. ↩︎
- Um lugar mais digno na história do cinema brasileiro deve ser dado à historiadora, poetisa e militante negra Maria Beatriz Nascimento (1942-1995), considerando mais atentamente as relações com essa arte presentes em sua biografia. Observá-la como responsável pelo texto e narração de um filme-ensaio documental complexo e radical como Orí (Raquel Gerber, 1989) ganha ainda mais sentido e força quando consideramos seus seguintes escritos como, a meu ver, instauradores do campo dos Estudos (críticos) de Cinema(s) Negro(s) Brasileiro(s): A “Senzala vista da Casa Grande”, texto negativamente crítico ao longa-metragem “Xica da Silva” (Cacá Diegues,1976) publicado nos jornais alternativos Opinião e Movimento em 1976; e “A Senzala vista da Casa Grande – Merchandise e a Contracultura no Cinema Nacional”, artigo de 1981 em que propõe um cinema identificado com a “afirmação da cultura afro-brasileira no conjunto da cultura nacional”.
↩︎ - “Ôrí e as vozes e o olhar da diáspora: cartografia de emoções políticas”, de Gilberto Alexandre Sobrinho, está disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8664558/26159. ↩︎
- “‘A terra é circular’: cosmologias afro-atlânticas e ação política no filme Ôrí”, de Vagner Gonçalves da Silva e Gustavo Maan, está disponível em: https://journals.openedition.org/horizontes/8344. ↩︎