Last Updated on: 21st agosto 2023, 08:49 am
O cinema de Lincoln Péricles tem uma coisa indistinguível: ele é função. Mais do que os procedimentos estéticos, o que muitas vezes chama a atenção no traço do cineasta é uma capacidade inexorável de ser parte de um todo, de colocar-se à disposição para o outro enquanto filma, ao mesmo tempo que evidencia também este todo do qual faz parte. Para ser função é preciso saber aglomerar, liderar, conduzir. Afinal, o “ser função” parte de um protagonismo, mesmo que muitas vezes se manifeste no campo do invisível. Não é preciso ser visto para ser função. É preciso, sim, agir tal qual — não é só pose, é postura. Ser função é fazer girar, mover as peças do jogo de um lado para o outro e conduzir, justamente, esse movimento de retirar um conceito de seu lugar básico e deslocá-lo a um seguinte, ainda indefinido.
Função é bagunça: é como abrir uma fenda, oferecer àquilo que parece bruto e inanimado uma aptidão poética ou estética. Ser função é desorganizar. É fazer da imagem uma ferramenta, fazer da voz um recurso, embaralhar as cartas e distribuí-las de modo a formarem outras múltiplas combinações, deslocando o significado primeiro das coisas para um sem fim de novas formatações. Como o cinema, o função tem uma responsabilidade quase química, é ele quem mistura, destila, operaciona e apresenta as novas formas. Transforma essas mesmas velhas formas em outras formas, inauditas, distintas e diferentes.
Das funções que “ser função” exigem, uma delas LKT cumpre muito bem, que é o ser sui generis. Pra ser função tem que ser original, diz a letra de Dexter e Mano Brown1. No entanto, mais do que qualquer procedimento barato de choque, o cinema de Lincoln Péricles oferece o espanto ao espectador por meio de um movimento que não é necessariamente o da violência direta, mas o da deformidade, buscando na matéria do mundo (sejam os arquivos de filmes, as imagens de internet ou os vídeos “roubados”) uma possibilidade de ressignificação.
É, sim, uma espécie de impropriedade — termo usado tanto por este quanto por tantos outros críticos de cinema para falar de sua obra. Mas, mais do que isso, é também uma espécie de mutação que as formas cinematográficas ganham quando chegam à sua mão: o som escuta, a imagem vê, a tela fala. Tudo vira um zigue-zague. A parede no fotograma de Entrevista com as coisas (Lincoln Péricles, 2015) pede uma ambiência, mas ganhamos o barulho das máquinas; a voz das crianças de Carta de interesse (Lincoln Péricles, 2014) requer uma visão de seus rostos, mas vemos o VHS de um churrasco na quebrada; o som dos entrevistados de Enquadro (Lincoln Péricles, 2016) clama por um contexto, mas recebemos a escuridão espiral das ruas do Capão Redondo. Tudo, em suma, é na contra-mão: a matéria é negativa, aprendemos e observamos por meio da diferença.
Boa parte dos filmes de Lincoln Péricles nascem de uma perturbação da forma cinematográfica, de um desmoronamento do status quo da matéria. Dentre suas obras, duas chamam atenção especialmente por uma questão geográfica fundamental, Carta de interesse e Entrevista com as coisas. Ambos os filmes são calcados em uma articulação sonora que diz respeito à paisagem, aos espaços habitados por aquele que filma e aqueles que são filmados, onde o que é visto se descompassa diretamente do que escutamos, produzindo uma forma de ruído desconcertante, um blefe.
Carta de interesse nasce de uma conversa entre um grupo de pessoas para tentar entender o que é uma orquestra. Não vemos as crianças que conversam com o cineasta, mas entendemos que o local é movimentado, habitado por outra gente, o que cria, paulatinamente, uma energia confusa, aglutinada, tresloucada. Aos poucos, a fala se intensifica, as vozes infantis se sobrepõem, e a imagem corta dos takes do que parece ser uma festa infantil (a detalhar: uma estranha festa infantil, sombreada por luzes neon, onde quem dança parece desconectado de quem assiste e vice-versa) para um churrasco de família em baixa resolução, rearranjando suas zonas de interesse e seus pontos de foco. A verdade é que tudo no contexto do filme é uma bagunça, isto é, uma deformação, uma tela pintada com traços estranhos, rugosos, confusos. “Eu também gosto de uma bagunça”, diz o cineasta a certa altura.
É esse movimento de adesão à desordem das formas que transforma a obra de Lincoln Péricles em um desafio. Se algum dia LKT já produziu um filme tese, Carta de interesse, como o próprio título esboça, talvez tenha sido o exemplo mais cristalino. Sobretudo porque o que importa do experimento não é a resposta da pergunta em questão — “o que é uma orquestra?” — mas o flerte que ele levanta. As imagens do filme ganham, aos poucos, uma autonomia esquisita, indo de enquadramentos que parecem familiares a rodopios e aproximações bruscas, enquanto cada vez mais aquela conversa de fundo adere a um caráter coloquial. As crianças que estão no campo sonoro parecem talvez estar no vídeo, o barulho dos arredores pode constar na imagem, e os instrumentos que se apresentam no primeiro plano do filme — alguns homens que tocam um acordeon — podem fazer referência a uma orquestra.
Mesmo assim, nada, absolutamente nada, é dado à vista: o código permanece secreto. Nesse jogo de vai e vem que o cineasta cria junto a seus interlocutores, saímos com mais dúvidas que esclarecimentos, mas a distinção formal que uma coisa estranha (os arquivos do VHS) junto a outra coisa estranha (aquela quase brincadeira infantil que se dá pelos áudios) ganha é de certa forma irreparável. O que avança é o procedimento cinematográfico: é pelo olho da câmera que a comunicação prevalece. As deformidades, misturadas, formam uma unidade de sentido, e quando algo animado (como o sonar da natureza) se imiscui com a vida alheia, o que antes era opaco passa a ser interpretado como sensorial. Criamos um pacto com aquilo que não vemos (as manifestações cada vez mais humanas, truncadas, presentes naqueles diálogos), ao passo que mais e mais nos aproximamos do que é observável, como se as imagens representassem um game onde é preciso encaixar as peças nos lugares corretos. Tudo se recicla à medida que se constrói, tudo se mistura, e ao mesmo tempo informa mais do que se estivesse dizendo algo objetivo. O desarranjo constrói o sentido.
De certa maneira, o caráter das imagens de Carta de interesse reflete uma área de representação que é comum no cinema de Péricles, que é a vida urbana, mas sobretudo a vida urbana vivida em comunidade, num senso de união cultural, de observatório de costumes. É um filme composto por imagens e cenas de famílias, não sabemos quais famílias, e às vezes é difícil perceber ao certo quais as origens daquelas pessoas, mas, como instrumentos musicais, como uma hipótese de orquestra, elas adquirem uma função social, formam uma espécie de comunidade, e isso o filme indexa a elas — interagem, dançam, se chocam, se aproximam e sorriem para a câmera. Essa estranheza um tanto quanto anódina também nos aproxima delas, aproxima e repele, num confuso movimento de reiteração. Cada um faz do seu jeito, constrói os gestos ao seu modo, sempre juntos e separados, ao mesmo tempo. É um filme de ação popular, de construção espacial, às vezes um filme de horror, escuro e obtuso, às vezes uma comédia de costumes. A estranheza que primeiro afasta depois acolhe. Como na química, tudo se transforma.
Assim como em Carta de interesse, Entrevista com as coisas é outra obra de Lincoln Péricles cujo caráter da deformidade se dá de forma essencial, também através da presunção de uma geografia exterior ao mundo que as imagens apresentam. A cartela final do filme, que é dedicada aos companheiros e companheiras do cineasta na luta diária pela sobrevivência, atesta um sentido lógico da fita em si. Entrevista com as coisas se inicia com uma espécie de epílogo, do mesmo modo que foi com Aluguel: o filme (Lincoln Péricles, 2014), Filme dos outros (Lincoln Péricles, 2015) e Enquadro.
Observamos o chacoalhar selvagem de algumas árvores através das grades de um condomínio, em um plano de baixa resolução. A filmagem indica um movimento da natureza, uma expressão atravessada pelas formas de vidas consideradas no Ocidente como inanimadas. Depois vem um plano fixo, muitos cadernos empilhados, e alguns papéis na parede. A sensação é de arritmia, de algo parado no tempo, um peso enorme sobre o mundo. O próprio corte brusco de uma sensação para outra ressalta o sentimento. Por algum momento somos capazes de duvidar que aqueles objetos falariam conosco. Código Penal 331 – desacatar funcionário público em razão dela – Pena de 6 meses a 2 anos avisa um bilhete colado nas paredes chapadas de uma instituição. Os sujeitos passam, vemos alguns corredores, o silêncio é retumbante. Até que volta o som das árvores, severo e ruidoso, mas as imagens nos mostram uma parede branca. ENTREVISTA COM AS COISAS, salta o título, mas as coisas não dizem nada, quem diz é a voz de uma inteligência artificial — talvez uma das únicas coisas que seja capaz de emitir um som similar ao humano.
É bem possível que Entrevista com as coisas seja um dos mais complexos filmes de LKT, não necessariamente por um caráter enigmático que as imagens carregam, mas sobretudo pela construção atmosférica proporcionada pelas ausências. Eis um filme cuja matéria é forjada na base da opacidade. Nenhuma voz é humana, nenhum rosto é familiar, e as imagens que volta e meia são aplicadas na tela parecem retiradas de locais duvidosos da internet. Essa construção de distanciamento, mas sobretudo de artificialidade, proporciona àquilo que é visto um caráter categórico de ausência, de cerceamento dos sentimentos e sensações.
Os planos iniciáticos fazem parecer que, por aqueles arredores, as pessoas que ali cruzam não conversam ou não se relacionam. É preciso então que um áspero zoom in invada a cena para cristalizar essas sensações. Como se estivesse a se aproximar de um humano, Lincoln Péricles opera no movimento da lente uma aproximação com a matéria, com o concreto. Se, no entanto, o cineasta não é capaz de escutá-la, suas imagens a confrontam. A proximidade, então, parece assustadora, como se fosse possível colocar as próprias paredes contra a parede, e pedir para que elas nos digam tudo aquilo que guardam e escondem. Entra, então, a voz de Odetta, que canta a canção Another Man Gone Done. “They killed another man / Another man done gone”2, diz a letra. É o retrato final da melancolia, a lástima cotidiana que se reproduz através daqueles locais cerrados. Entrevista com as coisas é um filme cuja anatomia é não apenas complexa, mas também angustiante. A matéria não precisa falar, seu silêncio diz tudo.
É um filme que, aliás, se aproxima bastante de outros feitos por Lincoln Péricles e sua turma, como As mulheres pensam (Talita Araujo, 2015), no qual Lincoln atua como montador, cujos locais de trabalho e lazer pesam na vida cotidiana de quem está dia a dia atrás do corre. Não é à toa que LKT e seus pares (e é possível citar aqui um par de colaboradores e companheiros de jornada, desde Talita até Adriano Araújo, um dos mais recorrentes protagonistas de suas obras) podem ser considerados função. Pois não é por acaso que o função é original, muito menos é por acaso que o função tem de desdobrar o mundo pra poder esculpi-lo e encará-lo de outras formas. O função é função também por necessidade, e a genialidade de suas composições nascem justamente desses meios e processos. O cinema, por sua vez, é apenas um ágil resultado dessa equação.