Agir ou não agir na caverna dos ladrões

Em linhas gerais, a Caverna dos Ladrões, ou “teoria do conflito realista”, foi um experimento conduzido pelos psicólogos sociais Carolyn e Muzafer Sherif nos anos 1950 com dois grupos de crianças no intuito de entender a formação de identidade coletiva e suas formas de competição e cooperação. Aqui, o experimento transformado em metáfora adquire um outro fator com a adição do verbo agir, recorrentemente utilizado no filme, reforçado pela expressão: “Agir na Caverna dos Ladrões”. A adição polissêmica impulsiona uma ação, permeada pela atuação, na alteridade que está presente ao longo de todo o filme.

O verbo agir, em sua polissemia, abrange tanto o ato de tomar providência (fazer) quanto o de trabalhar e o de conduzir-se/comportar-se de determinado modo. É nessa ambivalência entre ação e atuação que Deuses da Peste, de Gabriela Luíza e Tiago Mata Machado, busca agir em seu trajeto fílmico. Separado em três atos, o vencedor da mostra Olhos Livres na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes realiza em suas duas horas, um inquieto encontro entre cinema e teatro como fundo de uma crítica ao eurocentrismo. Junto a isso, a decadência artística e aristocrática, encarnada no personagem shakespeariano de Paulo Goya, também encena uma entrada metafórica na caverna dos ladrões, representadas pelo bolsonarismo e seu modo sectário.

No primeiro ato, intitulado “A tempestade”, o filme é tomado por uma profusão de imagens e sons sedutores, quiméricos e malditos que nos propõe um jogo entre um mergulho sensível, pelo turbilhão de imagens, e um nado ativo rumo a uma interpretação ético-política  “contra-colonial”. A intertextualidade e a interdisciplinaridade entre cinema e teatro são operações formadoras deste filme. O intertexto se manifesta por citações oralizadas, ao lado das interpretações shakespearianas e uma torrente de samples audiovisuais reempregados, que, em conjunto, produzem um certo cinema de atrações por sua sensorialidade transcendental. Essa intensidade produz um vigor cinematográfico inquietante, sem a dúvida de também ter/ser teatro, seja pelo modo de interpretação, pelas citações ou pela maneira que a câmera se comporta, muitas vezes em planos fixos gerais que dão espaço ao corpo dos atores. 

Ainda nesse ato, há uma cena em que o filme, de maneira ambígua, valoriza a elegância de um caminhar teatral clássico enquanto rejeita o eurocentrismo. Paulo Goya com vestes elizabetanas ensina este andar enquanto traz como referência em sua fala, a postura de Gilberto Gil, de Passistas e Porta-bandeiras. Assim, o filme incorpora de maneira dialógica diferentes cânones do sul e do norte global e produz um distanciamento brechtiano nessa guinada contra-hegemônica não iconoclasta. 

Já no segundo ato, “A peste branca”, o modo imagético e teatral coabita com uma ironia ainda mais escrachada pela tentativa de entrar e agir na caverna dos ladrões, ao realizar uma série de esquetes debochadas ao bolsonarismo. No meio da profusão dessas imagens remixadas e dissolvidas, uma figura em silhueta começa a dançar desengonçadamente Singing in the Rain. A silhueta mascara a referência já que a performance de Gene Kelly, deslocada e re-reapropriada, revela-se um deboche à ironia do ex-ministro Weintraub que, ao utilizar a música em um de seus pronunciamentos, proferiu a frase “Está chovendo fake news”. O que parece ser um deslocamento total ao fluxo semântico do filme, acaba por ser um reforço debochado ao discurso crítico à direita, aqui representado no bolsonarismo por ser uma citação da citação. 

Em outro momento, um grupo vestido de verde e amarelo começa a gritar frases usuais dessa direita brasileira. O tom evidentemente irônico demonstra um molde, simples e superficial, da descaracterização de alteridade. Não argumento aqui um respeito a esta identidade proto-fascista, mas justamente ao contrário. Esta crítica caricata menos produz uma posição contundente ao movimento e acaba por revelar um valor frágil e distante da esquerda em relação ao bolsonarismo (alegórico). Ao invés de dobrar a aposta nessas encenações — de viverem o locus insano de extrema-direita, a ponto de se tornarem a peste e avançarem com performances que vão além de palavras de ordem — a ironia aqui se torna um pastiche cínico de si mesma a tal modo que estas ações superficiais demonstram um reflexo de um cordeiro vestido de lobo com seus cascos, pelos e cornos aparentes. 

Se agir é a palavra que reaparece com frequência ao longo do filme, este ato parece ir em direção oposta, a fuga. Não uma fuga produtiva, de recuo estratégico enquanto modo de resistência, mas sim em um escape inócuo. Especialmente para a comédia. Penso nisso pois tal caricatura se assemelha de forma análoga a uma série de pastiches popularizados nas redes onde a esquerda, sobretudo de classe média e autoconsciente de seus lugares de poder, que ao enxergar suas “cafonices”, busca se ridicularizar numa “autocrítica” humorística. Porém, em função de sua reprodutibilidade formal, torna-se nada além de uma autodepreciação narcísica e cínica de manutenção de poder. Nesse sentido as citações e atuações miméticas ao bolsonarismo fragilizam o filme de tal maneira, que deixa cair toda a forma desenvolvida na ambiguidade. Curiosamente, quando a crítica do filme volta-se a uma certa aristocracia artística, ao eurocentrismo e modos que articulam um certo desmonte de poder inventivo, a ironia não é o padrão e o cinismo não surge. 

No terceiro ato, “O capital”, há uma sentença narrada em voz off que parece dar conta de algumas das questões aqui levantadas. A citação expressa que, na dificuldade de atuar como o Outro “vilanizável” — por medo de aproximar-se demais desse indivíduo ou grupo antagônico e acabar enxergando a própria putrefação ou encontrando semelhanças com esse ser “intragável” —, o pastiche e a ironia tornam-se métodos fáceis de produzir essa crítica. Crítica realizada por uma aproximação simulada, apenas caricatural, superficial e amedrontada. Este texto aparentemente autoconsciente evidencia e desenvolve a fragilidade caricatural anteriormente representada, criando novamente um distanciamento brechtiano que escancara tal superfície. 

Enquanto indica essa fuga, o filme retoma sua forma inicial por meio de remixes e desencontros entre som e imagem. No entanto, essa retomada acaba por reduzir o caráter imagético, justamente por uma repetição formal que aprisiona o sentido estético da mistura. Assim, a sua estrutura cíclica inicialmente inventiva se dá por vencida na própria reprodutibilidade estética e estrutural. A utilização de músicas de FBC e Tantão, que antes se exibia como um elemento dialógico da obra, tornam-se signos de reconhecimento espelhado de um locus artístico específico. Este modo é mobilizado através de um verniz contra-hegemônico que clama a si mesmo como objeto de olhar. Com isso, tal desequilíbrio entre performar de maneira mais consistente o “Outro” mais próximo de si do que o mais distante, acaba sendo um sintoma estranho desse nosso momento narcísico em relação à proposta de um filme que enfatiza o agir relacionado à atuação.

Autor

  • Lucas Honorato

    Graduado em Cinema de Animação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Mestrando em Comunicação e Cultura no PPGCOM da UFRJ. Orientado pela Prof. Dra. Liv Sovik. Pesquisa curadoria do Cinema Negro brasileiro, cinema de arquivo e estética da remixagem audiovisual. É curador freelancer, realizador audiovisual e pesquisador de cinema, comunicação, raça e etnicidade.

    Ver todos os posts