Alquimia histórica em terras Guaranis

Last Updated on: 2nd outubro 2023, 09:58 am

O plano fechado da nuca de uma senhora coberta por pequenas raízes de árvores coladas com fita crepe interrompe a escuridão da sala de cinema e dá início ao longa-metragem paraguaio Guapo’Y (Sofía Paoli Thorne, 2023). O filme se delonga na morosidade dos gestos e nas mãos de Celsa Ramirez Rodas que, um a um, coloca esses raminhos em seu corpo. Já, de antemão, essa pequena cena inicial aponta para aquilo que há de mais belo e singelo no longa de Sofia: os planos detalhe dos pés, das mãos e da pele de Celsa que produz alquimias ao manusear raízes e transformar elementos em chás e líquidos místicos.

Junto ao delongar desses gestos, o documentário  utiliza  entrevistas, em sua maioria no modo talking head de Celsa, Maria Lina Rodas e Derlis Villagra para contar uma história não oficial da ditadura paraguaia que ocorreu num campo de concentração entre os anos de 1954 e 1989. O relato dessas pessoas concentra-se em narrar a história desses “anos de chumbo” a contrapelo, pois, segundo os mesmos, é uma historiografia não dita a respeito desse período histórico. Partindo das experiências vividas nos porões da ditadura, Sofia monta tais relatos junto a uma diversa gama de materiais de arquivos que, de algum modo, tentam sustentar os relatos de Celsa, Maria e Derlis. Entrevistas em rádio do ditador Alfredo Stroessner e outros políticos de seu partido, jornais, cartas, CD’s e fitas de áudio são alguns dos materiais que o filme utiliza para compor essa polifonia arquivológica. A montagem opera como uma sutura que busca aproximar o relato dessas pessoas com os arquivos históricos encontrados de modo tão claro que torna-se excessivamente didático.

De modo indireto, por assim dizer, os arquivos que aparecem em meio ao filme chamam a atenção por suas formas de aparição em meio aos relatos. Há um procedimento em repetidamente mostrar tais arquivos dentro das cenas, em detrimento de uma intervenção digital estática que interromperia o fluxo do longa. Os jornais, as cartas e as fitas sempre aparecem em meio a outros elementos da casa de Celsa sendo manejados e manuseados pelas mãos desses sujeitos perseguidos pela ditadura. Dar materialidade física aos arquivos e manipulá-los com as próprias mãos diz a respeito de um gesto central ao filme que é, justamente, as mutações da matéria realizadas em um processo manufatural.

Frame de Guapo’Y

As mãos que foram utilizadas pela polícia como instrumentos para violar a humanidade desses presos políticos, são utilizadas aqui como instrumentos de cura, transformação e renovação dessa história, da mesma maneira com que Celsa faz sua alquimia guarani nas cenas iniciais. O filme, que carrega o mesmo nome de uma árvore que ficava ao lado do campo de concentração, parece demonstrar grande interesse nessas matérias orgânicas que, de algum modo, surgem como resistência a esse processo violento. É curioso que, nas últimas cenas do filme, uma sequência de rimas visuais colocam lado a lado as formas e texturas da natureza e a pele de Celsa. É muito bonito como essa associação entre planos equipara essa senhora e a árvore que crescia livremente ao lado do campo de concentração. Um gesto do filme que não apenas diz a respeito ao seu interesse nas matérias orgânicas, mas instaura uma resistência ancestral da natureza junto às tradições alquímisticas dos povos Guaranis. É como se aqueles presos políticos e a natureza fossem uma resistência a aquele ambiente hostil que resistiu ao tempo. Um elemento que estava antes e permaneceu depois da ditadura.

Contudo, o próprio filme parece não acreditar ou confiar na energia que o gesto e os relatos dos personagens carregam. Thorne sabe muito bem manejar tais artesanias e de fato há muita beleza nesses processos químicos, nos planos detalhes das mãos e na voz que narra os horrores da ditadura. Ainda assim, os arquivos sonoros, sobretudo, surgem tal qual uma muleta ao relato dessas pessoas, como se a experiência delas por si só não bastasse. A montagem passa a acionar os arquivos de modo a validar o relato vocal. É como se o filme dissesse: “Os arquivos históricos não me deixam mentir. A ditadura paraguaia foi de fato sanguinária à semelhança do que essas pessoas disseram”. 

Desse modo, o relato daquelas pessoas perde força e parece não ser suficiente para contar a história acortinada dos campos paraguaios de concentração. Sintoma disso é que, ao final do filme, vemos o local no qual Celsa, Maria e Derlis ficaram presos. Entretanto, já tínhamos visto esse espaço outras duas vezes ao longo do filme. Em um primeiro momento, a diretora aciona a voz desses personagens para documentar sobre suas estruturas e sua política interna. Em outro, Celsa e Maria desenham sobre uma cartolina branca demonstrando como era a divisão das celas naquele campo de concentração. Novamente: um processo histórico contado através das mãos e das vozes daqueles corpos, que se  enfraquecem pela descrença na própria artimanha. No final das contas, Guapo’Y parece não sustentar o próprio gesto místico, químico e alquímico de transformação e potência de outras matérias, de outros modos de se narrar a história como o próprio filme se propõe a fazer. Contar a história a contrapelo aparece enquanto discurso, mas, por vezes, desliza enquanto forma.

Autor

  • Renan Eduardo

    Crítico de cinema e pesquisador. Bacharel em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas e mestrando em Comunicação Social pela UFMG. Atualmente, é editor e redator da Revista Descompasso.

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