A câmera embrazante de ‘Sou feia mas tô na moda’

Last Updated on: 31st janeiro 2024, 05:13 pm

Sentado em um sofá e ao lado de suas parceiras de palco, Juliana, do grupo Juliana e As Fogosas, explica a origem da música “Ginecologista” e declama o verso para a câmera: 

“Veterinária é pra cachorro, eletricista pra dar choque, ginecologista pode crer é pra dar toque, fogosa e chapa quente vão ao ginecologista, tá ligado que é de lei dar um trato na pipita”.

Ao final da canção, nos aproximamos de seu rosto por meio do zoom. Um corte seco direciona para uma quadra onde o grupo dança uma de suas faixas para alguns jovens. A câmera usa e abusa do zoom, indo e voltando, com foco no corpo e no rebolado das três dançarinas. A montagem picota o pequeno clipe de menos de 30 segundos em diferentes takes que se assemelham ao material audiovisual, à época, produzido pela MTV. Um outro corte seco separa essa performance da cena seguinte: uma pesquisadora, de sotaque estrangeiro, em sua casa, folheia papéis e, em entrevista talking head, diz para a câmera: “[…] cantar de uma forma extremamente espontânea que…agrada. Eu quero isso, eu quero aquilo”. Após esse comentário, somos lançados ao palco de Tati Quebra Barraco, através de mais um zoom, que encara o dispositivo e grita no microfone: “com a xota, com a xota na piroca…com a pica, com a pica na xibita”

Frame de ‘Sou feia, mas tô na moda’

A diminuta aparição da “especialista”, um de seus únicos momentos do documentário Sou feia mas tô na moda (Denise Garcia, 2005), justaposta a performance de Tati, funciona como uma pancada sonora em um intelecto distante, uma resposta imagética à genérica redução da análise externa. Ainda nesse espaço do filme, o pequeno clipe das Fogosas se aproxima a outras sequências nas quais é visível a maneira que Garcia contrapõe formalmente as falas das artistas. Estas filmadas por um tradicional talking head ou câmera com a mão, dotadas de explicações, didatismos ou contextualizações do movimento funkeiro.

Essas sequências contrastantes entre relatos e performances ocorrem, principalmente, quando o ambiente é o baile funk. Para transpor toda a magnitude espiritual do ambiente, Denise faz da sua câmera uma ferramenta à serviço do que se escuta, se assiste e se produz sensivelmente no local. Para alcançar esse estado, apropria-se do zoom de forma incessante. O dispositivo se posiciona acima da plateia e dá closes nos corpos que se movimentam ao ritmo da música. A ambientação e apreensão sonora são difusas aos graves que saem do paredão. Sente-se o balanço, a agitação da massa funkeira, a dispersão causada pela luz dos holofotes, em contraste com as explicações e contextualizações – calmas, voltadas para uma compreensão direta da informação – e com foco na sensação inebriante de estar em uma casa de show.

Frame de ‘Sou feia mas tô na moda’

A proximidade entre Denise e os artistas permite ao filme deslizar a câmera por seus corpos e experimentar formalmente em zooms e em planos holandeses. Em momentos assim, é evidente a força das artistas, que sensualizam para a câmera, enquanto a plateia direciona o olhar para ambos (o dispositivo e as dançarinas). A sonoridade daquele espaço, o público e a sensualidade das dançarinas criam uma atmosfera hipnótica em que o dispositivo e o espectador são seduzidos e fisgados. O espírito embrazante baila em tela.

Em uma das sequências finais, destaca-se uma cena em que Cidinho e Doca cantam, dentro de um estúdio, uma das faixas mais conhecidas do funk: “Rap da Felicidade”. Na sequência em questão não há cortes. A dupla é filmada de maneira inquieta, mas, ao mesmo tempo, contida. O zoom é usado à exaustão para mostrar o rosto e se aproximar das bocas da dupla, mas não foge muito disso. Os artistas cantam repetidamente o refrão, com avidez, encarando o microfone e de olhos fechados. Denise filma como se soubesse a todo momento de que está visualizando um documento histórico, e, assim como nas cenas de baile, sem deixar de lado aquilo que é central ao funk:  o movimento e a vibração.

Frame de ‘Sou feia mas tô na moda’

Sou feia mas tô na moda se fortifica em uma estrutura que aposta naquilo que é errante e imprevisto. Uma montagem que, constantemente, escapa de apreensões puramente informacionais do documentário, na contramão de um modelo televisivo, ou que se esgota em suas performances; somado a uma câmera cambaleante que se deixa contaminar pelos ritmos, experimentações, graves e agudos, distorções e vibrações que emanam dos bailes, são os elementos que sustentam a aposta de Denise em captar o espírito do baile e fazer um filme embrazante.

Autor

  • Egberto Santana

    Formado em jornalismo pela Unesp de Bauru em 2021, é co-fundador da Revista Descompasso, repórter correspondente de Poá na Agência Mural de Jornalismo das Periferias, redator freelancer e crítico de cinema em vários cantos. Possui textos publicados no Plano Aberto, Persona Unesp, Corpo Crítico (2020) Mostra Cinema do Presente (2021), Nicho 54 (2021) e no Laboratório Crítico da Revista Crítica de Cinemas Africanos (2022)

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