Plastificar imagens de desejo: uma conversa a partir de ‘A sua imagem na minha caixa de correio’ (2024)

Last Updated on: 1st julho 2024, 02:15 pm

Exibido dentro da 19ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, o curta organiza em três partes [astros / cartas não têm voz / sobras] uma relação de atração irrevogável com as imagens e estrelas produzidas por Hollywood. Depois da exibição do filme, Silvino Mendonça e eu nos encontramos em Ouro Preto para conversar sobre a sessão e nossas obsessões particulares afetadas e remexidas por ela. Desse diálogo inicial, surgiram as perguntas a seguir, enviadas por e-mail para ele – uma espécie de entrevista à maneira da troca de cartas.

Clara Pellegrini: Silvino, puxando os fios da conversa que tivemos previamente, queria começar te pedindo para contextualizar o filme, porque ele foi exibido em uma sessão de curtas da Mostra Contemporânea na praça que me parecia ser, em certo nível, norteada por uma vontade de gerar atração e fisgar quem estivesse passando por ali, uma ideia de sedução da imagem que está também no centro dos processos do filme.

Silvino Mendonça: Segundo a curadoria da mostra, a ideia foi reunir filmes que tratavam da “memória de povos, culturas e territórios que possuem uma ligação vital com as artes do cinema e da música”. Antes da sessão, a Camila Vieira, uma das curadoras, adiantou às pessoas presentes que elas veriam “rostos conhecidos” no meu curta. Ele foi apresentado junto a outros três filmes, que tinham a música e a dança como eixos centrais: Spell, Olha a hora de entrar na roda e Oração. Pelo que pude perceber, os quatro filmes da sessão tratavam de alguma forma da relação entre as artes populares e sentimentos passionais.

Clara Pellegrini: A sua imagem na minha caixa de correio é majoritariamente constituído por fragmentos de mídias físicas digitalizados: recortes de revistas, ingressos de cinema, fitas VHS. A própria sequência inicial é uma emulação de uma exibição de filme analógico, com os ruídos da película visíveis antes de qualquer outra informação na tela, delimitada como uma janela clássica de bordas arredondadas. Isso permanece no decorrer do filme, o ruído sonoro da projeção analógica aclimatando os intervalos de narração e música, os takes de começo de rolo de filme separando conglomerados de imagens. Como você descreveria esse gesto de sublinhar a materialidade das imagens que você traz para o filme?

Silvino Mendonça: Eu coleciono recortes de revistas e fotografias impressas desde a infância. Antes de fazer cinema, eu também já fotografava e editava fotozines e fotolivros. Gosto de explorar diferentes tipos de papel e de impressão. No curta, eu apresento imagens de vídeos e revistas que fazem parte do meu acervo pessoal desde o final dos anos 1990. O scan em alta resolução dos recortes de revistas amplia as retículas e revela detalhes das tramas do papel. Eu adoro isso. No caso do vídeo, a baixa resolução e o som chiado remetem inevitavelmente às fitas VHS. Também usei muitas cenas que revelam as margens de filmes de 35mm. Eu até coleciono alguns rolos em casa, mas as cenas que estão no filme eu encontrei na internet, já digitalizadas. Todas essas cenas buscam situar o filme em um tempo em que o cinema popular habitava mídias mais tateáveis.

Clara Pellegrini: Na nossa conversa inicial eu pontuei que seu filme me fez pensar bastante nos trabalhos da cineasta Amanda Devulsky, porque eu vejo uma aproximação ao modo como ela lida com as imagens nessa sua decisão de fazer um filme absolutamente plástico e que assume a estética como algo valioso. Como você enxerga esse avizinhamento?

Silvino Mendonça: Conheço a Amanda. Crescemos na mesma cidade e temos alguns interesses em comum. Quando vi Vermelho Bruto (2022) no cinema fiquei bem mexido. A aproximação mais imediata que eu consigo identificar é a utilização de materiais de arquivo de um passado recente, que não parece nem tão distante nem tão próximo. No caso do meu filme, era importante que as imagens exercessem algum poder de atração, pois foi assim que elas se apresentaram para mim.

Clara Pellegrini: O filme, apesar de lidar com acontecimentos significativos e formativos da sua vida, faz muita questão de desviar da sua figura e da sua identidade. As cartas inscritas no filme, reescritas pela legendagem e pela voz que narra, são todas endereçadas a você, mas não temos acesso às suas respostas. É apenas através das suas obsessões que conseguimos nos aproximar de você. Por que a escolha desse distanciamento?

Silvino Mendonça: Foi um caminho natural na produção do filme, não sinto que optei por me distanciar. Eu não tenho mais contato com as pessoas com quem troquei cartas naquele período, então não tenho acesso ao que escrevi para elas. A troca de cartas aconteceu há mais de vinte anos e eu mudei bastante desde então. Imagino que aquelas pessoas também mudaram. Boa parte do que me lembro sobre o início da adolescência e sobre os meus interesses por cinema naquela época vem das cartas-respostas que guardei.

Clara Pellegrini: A pergunta anterior fala de um distanciamento, mas há no filme um desejo muito claro de aproximação, vide a escolha de deixar seu email no frame final, acompanhado do pedido “escrevam-me”. Essa vontade de proximidade é o próprio catalisador dos eventos sobre os quais o curta se debruça: no começo dos anos 2000, suas trocas de cartas com desconhecidos tinham primeiramente uma função social, de criação de identidade e comunidade em torno a interesses comuns, satisfação de um desejo de pertencimento que talvez não fosse saciado nos espaços em que você cresceu – uma espécie de rede social analógica. Mesmo que essa pulsão social permaneça, não há uma adesão completa a esse contexto, como se você idealizasse o que viveu no passado. Dito isso, como você administra a ideia de nostalgia dentro do filme?

Silvino Mendonça: Eu olho para aquele passado do filme com sentimentos mistos. Mesmo morando em Brasília, cresci sem acesso a uma programação de cinema diversificada e praticamente só assistia a grandes produções estadunidenses. Eram os filmes hollywoodianos que passavam na TV e no cinema e eram os atores e atrizes americanos que estampavam as capas da SET que me causavam tanta atração. Hoje, ainda me atraio pelo cinemão americano, blockbuster, ainda que eu esteja mais consciente dos problemas decorrentes de seu domínio cultural. Eu queria que o curta desse conta de um sentimento confuso, de atração e repulsa pela máquina hollywoodiana. Era importante para mim que o curta não maquiasse o passado, que fosse um relato sincero. Sei que há imagens ali que podem facilmente ser lidas como problemáticas. Faz parte. Muitas delas me trazem alguma nostalgia, sim, mas eu não sinto saudade do passado nem acho que o filme seja saudosista. E no final eu abro o canal de comunicação porque ainda tenho interesse em conhecer pessoas que gostam de cinema e também porque eu adoraria se alguém se reconhecesse nas cartas e desejasse retomar o contato.

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