Notas esparsas sobre uma força ou vou-me embora

Last Updated on: 7th outubro 2023, 02:39 pm

0. Pasárgada.

BH é cidade de passagem, cidade dormitório.

0.1. Uma fricção anunciada

Notas esparsas, como indica o título; vulgares, como indica o dicionário. Expressões a respeito de filmes produzidos em uma capital pacata com cara de cidade do interior. Não falo a respeito de todas as obras, mas somente aquelas nos quais há um movimento, uma força centrífuga que age sobre determinados personagens. Tal estímulo age em movimento tangente, desloca os corpos e os puxa para além dos limites da capital mineira em busca de um próximo lugar: o coração do mundo.

Ao passo que algo puxa para longe, há um encantamento por aquilo que está ao centro; uma constante disputa entre o pé dentro e o pé fora. Há um vetor tangente e um contra-tangente, uma força centrífuga e uma centrípeta que disputam por agir em maior grandeza sobre as pessoas que transitam por ali. Atração e repulsa. 

1. Tesão pelo perigo

Entendo a limitação e talvez a fragilidade fugidia em lidar com um escopo tão extenso de filmes diante de uma produção tão difusa e profícua que ocorreu nas redondezas da capital mineira. Entretanto, busco enxergar em cenas, personagens, ações ou pequenos fragmentos as manifestações sensíveis ou em maneiras que essa força age.

A descontinuidade do espaço urbano, em especial as periferias e os municípios que compõem a região metropolitana tidos como cidades-dormitório, dão vazão à fabulação desses espaços, uma maneira de reimaginar e reconfigurar tudo aquilo que os cerca. O artifício do movimento surge, portanto, como um modo de alterar a ordem natural das matérias. 

As motos que antes locomoviam pela cidade em vetor horizontal, recebem um novo estatuto do movimento, não por acaso diagonal, em Ramal (Higor Gomes, 2023) no qual os grauzeiros colocam-se em risco pelo bel prazer estético de fazer uma manobra perigosa. Ou também em Impermeável pavio curto (Higor Gomes, 2018) em que Jacqueline utiliza de sua bicicleta como válvula de escape dos lugares em que ela não cabe. 

Tal força também age sobre Grace Passô e Leo Pyrata em No coração do mundo (Gabriel e Maurílio Martins, 2019) em que a dupla também coloca-se em risco para alcançar um próximo lugar onde “a grama é mais verde e a água é mais fresca”.

2. Vetores

Força centrípeta: Bang Bang desce a Avenida Afonso Pena, caminha do sul ao centro. Atração gravitacional que concentra energias no ponto central.

Força e contra-força de Rafael dos Santos Rocha, vulgo Fael em Sete anos em maio (Affonso Uchoa, 2019) e Juliana Campos em Temporada (André Novais, 2018) que vivem um eterno retorno entre sair e voltar de BH por vontade própria ou por condições impostas a eles. Algo que atrai e repele, empurra e puxa.

3. Eu queria mudar

4. Mensagem: fogo

Se, em alguma medida, é possível pensar num pequeno fragmento de cena como “objeto” que resume esse conjunto de filmes produzidos em Belo Horizonte, em especial nos últimos 30 anos, a pequena frase dita por um personagem de A Hora Vagabunda (Rafael Conde, 1998) no cume do Viaduto Santa Tereza ao final dos anos 90 talvez seja uma delas: BH é cidade de passagem

O curta de Rafael Conde acompanha um dia na vida de André, um jovem cineasta, e de mais um grupo de amigos em uma pequena revolta de classe média contra sua própria cidade e própria produção artística. As ações dos personagens, que não escondem sua direta referência ao Bang Bang (Andrea Tonacci, 1971) – também filmado em Belo Horizonte, operam de modo um tanto quanto absurdo ou sem muito sentido aparente. Socar uma estátua, tomar um banho de gasolina no posto, subir no alto de um viaduto ou explodir um dos principais pontos turísticos da capital surgem dentro da obra em perfeita harmonia e naturalidade em relação às outras ações, como se pertencessem a uma mesma ordem, uma mesma lógica. O filme abraça a naturalização do absurdo enquanto matéria e faz desse artifício a força narrativa que move os personagens pela cidade.

Em A Hora Vagabunda a força tangente age sobre os personagens como uma maneira de dar vazão aos pequenos delírios e revolta, uma pulsão de explodir tudo que, ao final do filme, se materializa em uma tela branca que toma conta da cena, pois a película que registraria a explosão de um viaduto acabou poucos segundos antes. Apenas ouvimos no campo sonoro os personagens conversarem sobre esse imprevisto enquanto o barulho das bombas sobrepõem a todos os outros sons. 

A ironia que guia essa força está posta na cena seguinte que encerra o curta: um plano aéreo que sobe a Avenida Afonso Pena do Parque Municipal para Serra do Curral ao som da música 400 anos de favela. A mescla sonora que o filme tenta operar ao aproximar esse material de quebrada com uma imagem distanciada da zona sul de Belo Horizonte não sustenta o seu gesto. Este por sua vez é um sintoma da fragilidade de A Hora Vagabunda em lidar com manifestações artísticas tangentes ao centro. O filme não transmite a mesma revolta e rebeldia que as linhas pretas, grossas e pontiagudas que ocupam o mesmo Viaduto Santa Tereza que foi demolido por aqueles jovens em crise.

Autor

  • Renan Eduardo

    Crítico de cinema e pesquisador. Bacharel em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas e mestrando em Comunicação Social pela UFMG. Atualmente, é editor e redator da Revista Descompasso.

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