Geometrias do espaço: o comum na Cohab

Frame do curta-metragem Cohab (2013) para a crítica do filme escrita por Renan Eduardo e publicada na Descompasso.

Last Updated on: 4th setembro 2023, 12:10 pm

A quebrada de um lado e a selva de pedra do outro. Cohab (2013) é um filme que olha para o delongar de um dia comum no extremo sul da cidade de São Paulo. O título que indica o modo mais popular de moradia no Brasil, a Cohab (conjunto habitacional), opera como signo pertencente à matéria do habitual. No curta-metragem, esse espaço comum se manifesta em forma fílmica através das particularidades arquitetônicas desse conjunto de prédios e no modo em que o tempo percorre por ali. O filme se dá através de uma recusa à possibilidade dramatúrgica e se apega a aspectos ligados à forma e a estrutura daqueles objetos e espaços. Vemos automóveis, crianças, jovens, adultos e idosos transitarem por dentro desse território sem nenhuma continuidade narrativa além da temporal, que se desenrola pela morosidade daquele cotidiano tedioso. Os planos estáticos, longos e por vezes trêmulos saltam aos olhos pela maneira com que formas estruturais dos prédios e objetos preenchem a imagem. Linhas, quadrados, triângulos e retângulos marcam a divisão dos planos através de rigorosos enquadramentos que põem em evidência as formas geométricas daquele amontoado de concreto. 

Frame de Cohab (2013) para a crítica escrita por Renan Eduardo, publicada na Descompasso.
Frame de Cohab (2013)

Junto a isso, o filme compõe a sua sonoridade através do som direto, sem muito refino, que se modifica junto aos planos (com exceção da última cena) de modo a compor sua dimensão espacial com e contra a imagem. À medida que o filme mostra tal espaço, os sons que vêm do fora de campo preenchem o campo, mesmo sendo algo que não está em seu escopo de visão. Assim, Lincoln constrói no curta-metragem uma noção espacial que está para além daquilo que é visto. 

Em determinado momento, o filme enquadra, em conjunto, quatro janelas, algumas antenas parabólicas e o céu anoitecendo, ao passo que ouvimos uma massiva quantidade de ruídos vindos de uma movimentada avenida que é mostrada no plano seguinte. Tal dimensão opera em um conjunto simbiótico entre o plano e o fora de plano. Dessa forma, a dimensão sonora do campo e do fora de campo funda uma terceira ordem: o extracampo. 

À medida que há uma forte divisibilidade nas formas arquitetônicas daquele espaço, o extracampo sonoro tensiona aquilo que está no espaço público e privado, do que está do lado de dentro ou do lado de fora. Como demonstrado na cena supracitada, não apenas o som opera sob tal terceira ordem, mas o plano de caráter voyeurístico, pique Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954), também põe em tensão aquilo que pertence a esfera pública (a avenida que se manifesta pela via sonora) e aquilo que pertence à esfera privada (o interior da casa daquelas pessoas). Juntos, o filme propõe uma configuração daquilo que é comum como uma matéria que coexiste em ambos os espaços.

Autor

  • Renan Eduardo

    Crítico de cinema e pesquisador. Bacharel em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas e mestrando em Comunicação Social pela UFMG. Atualmente, é editor e redator da Revista Descompasso.

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