Tecendo memórias entre brincadeiras e concreto

Last Updated on: 6th setembro 2023, 11:06 am

Edna, a dona da voz que abre Mutirão: O Filme (Lincoln Péricles, 2022), com sua longa experiência na luta por habitação no Capão Redondo, começa definindo o que é uma casa. Enquanto ela explica, uma menina joga Minecraft em seu telefone celular. A menina é Duda, que, logo após a cartela inicial do filme, nos cumprimenta com trejeitos de youtuber e diz a que veio: “Hoje eu vou apresentar aqui essa foto. E eu acho que ela é de São Paulo, muito tempo atrás.”. Vemos uma foto analógica em que as cores estão desbotadas e o plano é aberto. No centro da imagem, duas mulheres carregam um balde. Segundo Duda, estas são sua tia Ciça e sua avó, que estavam construindo um prédio. Um amontoado de brita e um terreno descampado compõem a cena. Duda pede para que Lincoln intervenha na imagem dando o zoom, de modo a destacar um rosto que estava atrás de uma das mulheres: uma criança.

Duda identifica nas imagens a presença recorrente de crianças. Ela questiona como uma criança pode ajudar no mutirão. Edna explica que o mutirão é tipo uma brincadeira e cada um ajuda como pode. Tem gente que vai lá pra contar piada e deixar o processo mais leve. Tem gente, como a Duda, que trabalha o acervo, que olha e brinca com as memórias do bairro.

Em uma das fotos, o rascunho dez/88 aparece no canto inferior da imagem. Mais uma pista para nos localizarmos no espaço e no tempo ao lado de Duda, a narradora do filme. “Deve ser algum lugar de São Paulo”, ela diz. O que mais as imagens nos revelam? Pela distância com que as fotos foram tiradas, a profundidade de campo das imagens, a pequenez das pessoas comparadas ao lugar, é possível inferir que quem fez o registro tinha a preocupação de ambientar e de mostrar o espaço vazio que em breve se transformaria em concreto.

Frame de Mutirão: o filme

A história de um lugar é uma ficção que se elabora a partir de sua matéria estrutural. O gesso, a brita e a luz que entram pelo obturador são apropriadas pelo filme de um material que foi produzido por uma câmera fotográfica. O olhar, a narração, a subjetividade, a invenção de Duda sobre as imagens, atuam como modo de organizar as lembranças em uma estrutura inteligível e construir uma memória viva daquele território. Duda é agente da construção do seu lugar, ainda que trinta anos depois do movimento de mutirão que vemos nas imagens. O pedido de zoom, de passar para a próxima foto, de adicionar músicas ao filme, são exemplos de intervenções e reorganizações; do gesto de retomar os arquivos e fabular o passado a partir do presente e do que poderia ter sido. Nesse sentido, o filme em si é produzido através de um processo coletivo e colaborativo, gesto similar ao que levantou as paredes da Cohab Adventista. Se recordar é olhar para o passado, elaborar a memória é projetar o futuro. Duda se despede com a promessa de retorno: “Tchau, fofuxos e fofuxas, até o próximo filme”.

Autor

  • Iara Letícia

    Graduada em Comunicação Social com habilitação em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas. Atriz pelo Teatro Universitário da UFMG. Compôs o Corpo Crítico do 24° FestCurtasBH, e o Júri Jovem da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Escreve, atua e produz.

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