As Dudas de niLL e Lincoln: explorando os elos entre Regina e Filme de Domingo

Frame de "Filme de Domgino" para a crítica do filme publicada na Revista Descompasso.

Last Updated on: 8th setembro 2023, 11:33 am

Esse texto pretende traçar paralelos entre duas mídias diferentes: o álbum Regina, do rapper niLL, lançado em 2017, e o curta-metragem Filme de Domingo (Lincoln Péricles, 2020). O segundo tem o primeiro em sua trilha sonora, mas a correlação vai um pouco além disso.

Lincoln Péricles e niLL, cada um à sua maneira, usam do cinema e da música para entrelaçar momentos familiares cotidianos com os artifícios tecnológicos de comunicação. Se o disparador de LKT é o vídeo de Duda, enviado para o tio, o do rapper paulistano é o áudio do zap.

Nos intervalos desse jogo, transcrevo versos, áudios de zap e vídeos contidos nas obras.

A faixa WiFI, do rapper paulista niLL, é uma das músicas que compõem as primeiras sequências de Filme de Domingo (Lincoln Péricles, 2021) onde a protagonista Duda, uma criança, caminha sozinha pelo centro de São Paulo. Duda observa as lojas movimentando a cabeça de um lado e para outro enquanto a câmera segue por trás. A música é composta por um jazz suave, bem baixinho, como se estivéssemos ouvindo de outro cômodo, até o rapper começar com o verso: “É que eu levo as coisas um pouco a sério demais, e odeio quando elas ficam todas iguais.” O diretor diminui e interrompe a faixa para deixar só o áudio de Duda enviado para o tio Adriano, que vemos o rosto em plano fechado, dentro do seu consultório de trabalho: “oi, titio, aqui é a Duda”. *Notificação do WhatsApp* “Você nem deve lembrar da Cohab mais, você nem me visita mais…”

Frame de "Filme de Domingo" (2020, Lincoln Péricles) capturado para ilustrar a crítica publicada na Revista Descompasso.
Frame de Filme de Domingo
Frame de "Filme de Domingo" (2020, Lincoln Péricles) capturado para ilustrar a crítica publicada na Revista Descompasso.
Frame de Filme de Domingo
Frame de "Filme de Domingo" (2020, Lincoln Péricles) capturado para ilustrar a crítica publicada na Revista Descompasso.
Frame de Filme de Domingo

“Oi tio, eu tô com saudade”

– Duda de niLL

“Tio, eu tô com saudade, saudade, saudade, saudade…”

– continuação da mensagem da Duda de Lincoln

Esse gesto de apresentar um marcador sonoro das comunicações virtuais, o envio de áudio e a exibição de vídeos em formato vertical (o padrão do celular) ao lado das encenações do cotidiano de uma família é o fio que liga a trama de Filme de Domingo. A primeira cena do filme já delimita essa ideia. A gravação de Duda é reduzida para o centro da tela em um formato vertical que lembra a visualização de vídeos no celular. O discurso da criança, com uma voz aguda, fofa e animada, grita com quem assiste. Não convoca um espectador em específico, mas sim um imperativo do plural, dos espectadores do vídeo hospedado no canal do Youtube: “oi, gente! eu vim de novo no canal, de novo e de novo…”. Duda logo apresenta o seu look, dia e local da gravação do vídeo. A imagem some, mas o monólogo continua. Lemos a frase “Saudade bate até no trampo, né tiozão?” em um fundo preto. Agora vemos o tio, em seu ambiente de trabalho. O pequeno filme da Duda está dentro do Filme de Domingo, assim como ele também obedece à relação familiar conectada pelos planos.

O tio é outro disparador dessa narrativa, ao visitar a sobrinha, na casa da irmã, Francineide, na Cohab do Capão Redondo. Adriano presenteia os familiares e vai até a feira com eles, come um pastel, brinca com a Duda e aconselha a irmã após ouvir o relato do sonho dela. Mas o destaque mesmo está na pequena, que é perseguida e persegue a câmera, assim como ela é quem está presente materialmente no gesto de trazer o vídeo e o áudio do celular. Fora isso, a personagem brinca diretamente com o quadro, que também responde aos seus movimentos, como na cena onde ela movimenta o graveto mágico. Na feira, Duda é perseguida pela câmera quando está sozinha fazendo careta para os peixes em frente ao aquário, ou quando está mastigando o pastel e temos o zoom in no mastigado. 

Frame de "Filme de Domingo" (2020, Lincoln Péricles) capturado para ilustrar a crítica publicada na Revista Descompasso.
Frame de Filme de Domingo
Frame de "Filme de Domingo" (2020, Lincoln Péricles) capturado para ilustrar a crítica publicada na Revista Descompasso.
Frame de Filme de Domingo

“A Duda ainda é pequena, o mundo é gigante”

niLL – Wi-Fi

No início de 452 (Intro), faixa que abre o álbum Regina, do rapper supracitado, ouvimos o som do videogame Xbox 360 iniciando. Em seguida, uma sequência de áudios de WhatsApp, da irmã, da sobrinha, e da mãe do rapper (homenageada no álbum). Há um começo, meio e fim, ainda que cada mensagem tenha um discurso específico. São avisos do cotidiano, questionamentos rápidos, comentários sobre as músicas do rapper e despedidas carinhosas.

Como o próprio niLL comenta em entrevista para o portal Noisey

“Como o disco é algo bem pessoal, eu queria mostrar algumas coisas da minha vida que não podia deixar passarem batidas. Por exemplo, tiveram faixas que minha sobrinha mandou um áudio pra mim. Ela pegava meu celular e mandava ‘tio, tô com saudade’, e quando eu parei pra observar, achei que casaria bem com o contexto do disco.”

A base é a mesma em Filme de Domingo, não somente na coincidência de nomes, mas também na demarcação e rememoração de certos artifícios das plataformas de comunicação. Tanto Regina quanto Filme de Domingo se iniciam (ou no caso do álbum, termina a primeira faixa, para ser mais exato) com arquivos normalmente vistos/ouvidos pelo/no zap. Lincoln reduz o quadro para o centro, no mesmo tamanho do que seria o celular. niLL deixa o apito sonoro do movimento para enviar um áudio. 

Essas marcações delimitam a origem dos vídeos, ativam os sentidos e a memória sobre os dispositivos. A montagem (sonora ou visual), por sua vez,  indicam a conexão entre quem envia e quem escuta (ainda que qualquer um possa ouvir o áudio e isso seja perdido no caminho).

Em ambos os casos, existe também a ação de quem está sendo gravado pelo dispositivo. Com Lincoln, o personagem é livre e usa do que está na sua frente (a câmera) para performar em cima dos códigos de outra plataforma, trazendo para o filme os discursos de outro contexto (a blogueirinha do Youtube, o programa de entrevistas). Em Regina, por sua vez, não há a lógica da performance nos áudios (são mensagens do dia a dia registradas na conversa), mas sabemos a origem pela escuta e pelo marcador sonoro da ativação da gravação do zap, que demarcam um outro padrão no envio de áudios, como os avisos, saudações e despedidas.

Ao lado dessas inserções, surge o plano cinematográfico e o verso cantado no rap . Quando a mensagem de áudio é finalizada, logo temos as rimas. O vídeo da Duda é cortado, logo temos a cena do tio e as encenações do cotidiano que completam o Filme de Domingo.

“Mas falar de comida no rap não pode

Não pode, não pode

Quem inventou isso? Nego, eu tô com fome

Num fode, tipo, como?”

niLL part. De Lev e Rodrigo Ogi – Loopers

De maneira geral, há aqui um outro olhar para as operações de comunicações desses aplicativos. Tanto Lincoln quanto niLL borram a maneira como percebemos os artifícios da comunicação tecnológica, inseridos em um contexto áudio e visual maior, mas ainda presentes na poética do cotidiano ou nas memórias trazidas pela rima. 

Ficou faltando um abraço, ‘cê sabe

‘Cê sabe, ‘cê sabe, ‘cê sabe, ‘cê sabe

Da nossa história ninguém viu metade

niLL – Tchau, Regina

“Alegria virou lição, deixa eu ir à luta”

– cartela de Filme de Domingo

Frame de "Filme de Domingo" (2020, Lincoln Péricles) capturado para ilustrar a crítica publicada na Revista Descompasso.
Frame de Filme de Domingo
Capa do álbum "Regina" do rapper niLLL para ilustrar a crítica de Filme de Domingo (Lincoln Péricles, 2020) publicada na Revista Descompasso.
Capa de Regina

Autor

  • Egberto Santana

    Formado em jornalismo pela Unesp de Bauru em 2021, é co-fundador da Revista Descompasso, repórter correspondente de Poá na Agência Mural de Jornalismo das Periferias, redator freelancer e crítico de cinema em vários cantos. Possui textos publicados no Plano Aberto, Persona Unesp, Corpo Crítico (2020) Mostra Cinema do Presente (2021), Nicho 54 (2021) e no Laboratório Crítico da Revista Crítica de Cinemas Africanos (2022)

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